"Você não vai sentir dor". Esta era a promessa que o anestesista Leonardo Camargo costumava fazer quando sedava pacientes para a intubação - a única promessa possível diante dos casos mais graves de covid-19.
Os estoques de sedativos e bloqueadores musculares estão se esgotando em todos os Estados do Brasil, segundo o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass). No hospital Tacchini, em Bento Gonçalves (RS), onde Camargo trabalha, os médicos já recorrem a medicamentos em desuso para manter os pacientes intubados e preveem o uso de antipsicóticos com efeito adverso de sonolência como alternativa em caso de escassez total de sedativos.
"A gente está associando sedação com medicamentos que usualmente não se usa em terapia intensiva para manter paciente em ventilação mecânica, como Metadona (opioide) e o próprio Bialzepam (ansiolítico) em comprimido", disse Carmargo à BBC News Brasil.
"São medicamentos que já estavam em desuso e a gente está associando para poder usar e baixar as doses dos outros remédios em falta. Sou anestesista há 15 anos e usei tiopental (barbitúrico usado para indução de anestesia geral) duas vezes lá na época da minha residência. A gente está começando a usar tiopental agora para os pacientes, porque os medicamentos mais modernos estão acabando."
Essa semana, porém, a equipe do hospital passou a discutir alternativas mais dramáticas diante de um cenário de falta total de sedativos e bloqueadores musculares usados para intubação.
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Camargo conta que está levantando o estoque de antialérgicos e antipsicóticos, por serem remédios que provocam sonolência e leve sedação como efeitos colaterais. Eles seriam usados numa eventual tentativa desesperada de manter os pacientes inconscientes enquanto permanecem intubados.
"Enquanto tiver remédio para alergia, que dá um pouco de sedação, ou remédios antipsicóticos, como Heloperidal, vamos usar para tentar manter os pacientes intubados", disse o anestesista.
Caso o pior cenário se confirme e a escassez de sedativos não seja resolvida no curto prazo, as cenas que o médico descreve se assemelham a imagens dramáticas vistas em guerras: pacientes com dor se debatendo por falta de anestesia, tratamentos improvisados, prateleiras vazias e mais mortes.
"A gente ouve falar que em alguns locais tiveram que amarrar pacientes. Eu não sei se vamos chegar a isso", diz.
"A gente já está verificando o que tem de estoque. Está tentando criar essa contingência e se preparando para o pior."
Outra medida adotada pelo hospital onde Camargo trabalha foi interromper todas as cirurgias eletivas, já que analgésicos e sedativos que tradicionalmente eram usados só nos centros cirúrgicos passaram a ser utilizados, também, para manter os pacientes graves com covid-19 intubados.
"O principal malefício é que essa pandemia vai gerar outras pandemias. Quantos pacientes oncológicos vão perder seu tempo de cura? Quantos estão com dor e não conseguem fazer suas cirurgias?", lamenta.
"Sem contar que hoje a gente está com estoques baixando cada vez mais e isso afeta até os profissionais de saúde. Como vai ser daqui uma semana?"
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'Fico nauseado'
Camargo diz que fica "nauseado" em pensar no que pode ocorrer se acabarem os medicamentos, um cenário que ele diz ser possível se não houver reabastecimento em 10 ou 15 dias.
Atualmente, o hospital onde ele trabalha tem 63 pacientes graves na UTI ou em leitos improvisados na sala de recuperação de cirurgias e no pronto socorro. Desses doentes graves, 39 estão intubados e contam com esse esforço de combinação de medicamentos modernos e em desuso para continuarem sedados.
Camargo explica que a presença de um tubo de oxigênio na garganta de alguém, que se prolonga até o pulmão, é um "estímulo muito agressivo".
Não é difícil de imaginar. Um paciente sem sedação se debateria e poderia tentar retirar o tubo com as próprias mãos, ferindo toda a faringe, diz o médico.
"Uma pessoa qualquer vai dar um pulo se você colocar uma colher no fundo da garganta para baixar a língua. Se o paciente intubado acordar, ele vai começar a se agitar, vai começar a brigar com o respirador, em alguns momentos, pode ter a extubação inadvertida por agitação", disse.
E, segundo Camargo, seria impossível intubar um paciente consciente, sem sedativo. Numa situação assim, os médicos poderiam se ver rodeados de pacientes se debatendo até morrer por falta de ar.
"A gente ouve falar que em alguns locais tiveram que amarrar pacientes. Eu não sei se vamos chegar a isso. Mas o risco é esse, de não conseguir ventilar os pacientes morrerem se debatendo por falta de oxigênio, porque a gente não vai conseguir fazer a ventilação mecânica."
A intubação é um procedimento importante para pacientes graves com insuficiência respiratória aguda, quando o pulmão perde a capacidade de oxigenar o sangue. Enquanto a máquina faz o trabalho de oxigenação e o paciente permanece sedado, os médicos aguardam que o organismo produza anticorpos contra a covid-19 e a inflamação no pulmão melhore.
Camargo diz que se sente impotente diante da perspectiva de não poder cumprir a própria função de anestesista em um hospital lotado de pacientes precisando de oxigênio.
"A sensação é de um soco no estômago. Nós podemos chegar a não ter remédios para manter os pacientes em oxigenação, em ventilação. Eu sou um anestesiologista que trabalha com essas drogas e eu posso me ver diante da situação de não poder fazer mais nada para manter esses pacientes sedados", lamenta.
"Isso pode acontecer daqui a 10 dias, 15 dias. Não sabemos. Fico até um pouco nauseado."
'Segurou na minha mão'
E o temor de deixar pacientes desassistidos se une ao medo de ver parentes e amigos nos leitos improvisados de UTI. Com o descontrole das infecções no país e os sucessivos recordes de mortes diárias, médicos passaram a ver rostos conhecidos nos leitos dos hospitais onde trabalham.
No domingo (21), Leonardo Camargo se deparou com um vizinho quando foi chamado para participar da intubação de um paciente com covid-19.
"Minha esposa comentou que nosso vizinho do prédio estava internado. No domingo, eu estava de plantão e fui chamado para intubar um paciente. Quando cheguei no quarto, era ele. Como eu estava paramentado, de máscara, não sei se ele me reconheceu. Mas a gente se olhou", conta.
O homem estava com medo de morrer e não queria ser intubado. "Eu acalmei ele, explique que ele ia ficar sem dor, sem memória. Mas quando a gente começou a introduzir as medicações, ele tentou pegar a minha mão e eu vi que ele estava pegando na mão da fisioterapeuta", recorda o anestesista.
"Ele queria ter a sensação de se segurar em alguém. Isso me marcou."
Camargo diz que vai dividir seu tempo, nos próximos dias, entre assistir pacientes e analisar estoques de medicamentos, criar planos de combinação de remédios e torcer para que os sedativos cheguem antes de um cenário de caos.
Ele quer ver o vizinho se recuperar ou, pelo menos, morrer sem dor.
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