No último ano de sua vida, Igor Soares Silva saiu de casa às 4h45 todos os dias para levar o pai de carro até o trabalho. Seu maior medo era que Valdir, um eletricista de 64 anos, fosse contaminado com o coronavírus. De carro, protegeria o pai dos perigos do ônibus ou do metrô lotados.
Até que Valdir foi transferido para um local de trabalho mais distante: um shopping na avenida Paulista. Igor teve de passar a deixar o pai na estação de metrô.
Quando Valdir se contaminou no fim de fevereiro - talvez no trabalho, talvez no transporte público - não teve jeito. Em casa, distanciamento físico era impossível. Igor, a irmã Korine, de 34 anos, Valdir e a mãe de Igor, Gilda, de 61 anos, dormiam todos no mesmo quarto.
Os quatro pegaram coronavírus e ficaram muito mal, conta Korine. No sétimo dia de sintomas, com pai e irmão com muita dificuldade para respirar, Korine levou os dois até um posto AMA (Assistência Médica Ambulatorial). O pai foi internado, mas o irmão foi orientado a voltar para casa. "Ele ficava deitado o dia inteiro. Ele devia estar pensando: 'Eu vou aguentar. Meu pai já está internado, e eu sou tudo para minha mãe'", diz Korine.
Até que não aguentou mais, e a família decidiu levá-lo para o hospital. Dois dias depois, Igor fez uma videochamada para um dos irmãos mais velhos: Helder, o padrinho. "Eu vou precisar ser intubado. Mas não é para ninguém se preocupar, vai dar tudo certo. Eu confio em Deus, confiem em Deus também."
No Brasil, a percepção inicial da pandemia de que pessoas jovens estavam menos propensas a desenvolver a forma mais grave da covid-19 já não é a mesma. Agora, o que médicos têm visto em UTIs brasileiras são jovens chegando colapsados ao hospital, precisando de vagas na unidade intensiva e intubação. Muitos compõem o número de 328 mil mortos por covid-19 no país.
Enquanto seu pai se recuperava já em casa, Igor teve pulmão, fígado e rins afetados. O jovem de 25 anos não tinha comorbidades. Ficou 33 dias intubado, mas não resistiu e morreu na segunda-feira (29/3). Igor deixou pais, três irmãos, amigos e fãs de seu trabalho. Deixou também seus desenhos e ilustrações, algumas reproduzidas nesta reportagem.
"Nossa preocupação em casa sempre foram nossos pais. A gente jamais pensou que era o Igor quem ia ficar mal do jeito que ele ficou", diz Korine. "Tínhamos medo da morte dos nossos pais, mas perdemos nosso caçula", diz, emocionada.
O irmão do meio, Helder, de 36 anos, diz que agora todos os dias acorda com "uma dor no peito, dor no coração". "É um pedaço de mim que não está mais comigo."
O mais desejado
Igor nasceu no dia 25 de abril de 1995, quinto filho e o "mais desejado", diz a irmã. Antes dele, a dona de casa Gilda deu à luz um bebê que faleceu nas primeiras horas de vida. Na gravidez de Igor, manteve-se em repouso o tempo inteiro. "Quando ele nasceu, foi como se ela tivesse tomado uma pílula de felicidade", conta Korine.
Era mesmo um caçulinha. A diferença de idade com o irmão mais velho era de 12 anos. Thiago, Helder e Korine eram uma escadinha e, Igor, o bebê. "Ele foi o filho que, por ser caçula, teve todos os mimos dos pais e dos irmãos", diz Thiago, o mais velho, hoje com 37 anos.
Ao mesmo tempo, conta ele, Igor não se tornou uma criança mimada. "Tinha muito respeito por nós, seus irmãos, e um carinho muito grande pelos meus pais. A vida dele era meus pais", diz.
Os pais e quatro filhos viajavam juntos com frequência: para o litoral de São Paulo ou para Minas, onde os tios moram. Igor gostava da roça, dos cavalos e outros bichos.
Desenho, uma paixão
Foi olhando os irmãos mais velhos que começou a desenhar. "Quando eu tinha uns 15 anos e ele tinha uns quatro, eu desenhava e ensinava ele", diz Helder. O caçula também começou a tocar violão por causa do irmão. "Grudes", como define Korine.
"Ele era muito apegado a mim. Conversávamos, ele pedia conselhos. Eu sempre fui um grande irmão para ele e ele sempre foi um grande irmão para mim. Fazia tudo por ele", diz Helder, que o define como uma pessoa "família", de bom coração. Igor queria realizar os sonhos do pai e da mãe, e também era um batalhador, acreditava e lutava por aquilo a que almejava, descreve.
Na época da escola, Igor "desenhava pra caramba", lembra a melhor amiga, Tamyris de Lima, de 26 anos. Os dois se conheceram quando tinham 15 anos. Igor estava tocando uma música da banda de heavy metal Metallica no violão - "mas tocando mal", ri Tamyris - e ela foi brincar com ele.
"A gente era meio o oposto do outro. Eu extrovertida e ele mais tímido", diz ela. Antes mesmo da pandemia, Igor já era caseiro. "Muito nerd", como diz a amiga. Não saía, não ia para a balada. O programa dos dois amigos era ir ao cinema.
Para ela, o melhor amigo era uma pessoa de coração puro. "Inocente de tudo. Tinha o jeitinho dele nerd, quietinho. Por isso que dói muito, uma pessoa tão na dele, que não saía, acontecer isso daí."
O publicitário André Carvalho, de 26 anos, lembra das vezes em que frequentou a casa do amigo, antes da pandemia, para jogar RPG de mesa e tomar cervejas no quintal. Coisa de nerd. O Igor, diz o amigo, era assim: "um nerd de primeira".
Tinha paixão por cultura pop, quadrinhos e ficção científica. Escutava rock e metal. Jogava games como The Witcher 3, seu preferido, mas também procurava jogos de estúdios independentes para analisar os desenhos dos games e aprender e conhecer novos artistas.
Era fã da DC Comics - seus heróis favoritos eram o Batman e o Super-homem. Livros? De fantasia e de espada e feitiçaria. Obras como "Senhor dos Anéis", "Duna", ou então livros de ficção científica do Isaac Asimov, um dos autores mais famosos do gênero no século 20.
Ele próprio gostava de desenvolver histórias. Carvalho lembra como ele, Igor e outra amiga tinham um projeto de desenvolver uma HQ. Igor ajudaria com o roteiro e desenharia tudo.
Os desenhos de Igor refletem sua paixão por ficção. Há dragões, bruxos e sereias em cenas de ação, desenhos repletos de detalhes. Ele se aprofundava nos trabalhos, fazendo estudos e testes com os personagens que criava.
"O talento do Igor foi interrompido, infelizmente. Espero que sirva de inspiração para outros artistas, que é algo que ele queria bastante", diz Carvalho.
Ele diz que o amigo sempre botava as pessoas para cima, principalmente em relação às aspirações profissionais de cada um. "Sempre nos dizia para continuar, não desistir, não nos deixava ficar parados."
Foi assim que ele próprio decidiu encarar o desejo de ser artista.
Autodidata
Antes de decidir se dedicar plenamente à arte, Igor trabalhou como office boy e como empacotador num horti-fruti. "Mas nunca se adaptou", avalia Thiago. "Ele nasceu para desenhar. Isso estava enraizado muito nele."
Então, com o apoio dos pais, fez cursos de desenho em uma escola de arte digital, passando seus desenhos do papel para o computador.
Apesar de ter dificuldade para manter a casa alugada, o pai de Igor se esforçava para pagar materiais e cursos para o filho.
Em casa, o jovem tinha seu espaço: uma mesa em um canto da cozinha, onde ficava seu computador e onde ele passava dias e noites estudando e praticando. Depois dos cursos, passou a ser autodidata.
"Ele cresceu e começou a ter uma personalidade muito forte como homem. Colocou na cabeça dele que ele queria aquele sonho e ficou bastante decidido e determinado", diz Thiago.
Nas redes sociais, o jovem assumiu perfis profissionais, definindo-se como ilustrador, artista conceitual e designer de personagens de São Paulo.
Sua foto de perfil, desenhada por ele, é um autorretrato com Polly, seu amado papagaio, no ombro. No ano passado, sua carreira começou a decolar. Igor começou a vender seus trabalhos para fora, ganhando em dólar e ajudando em boa parte das contas da família. Queria comprar uma casa para a mãe.
Quando seus irmãos anunciaram no Twitter que ele havia falecido, a família recebeu uma chuva de mensagens de admiração e carinho. Foram quase 33 mil curtidas na mensagem e 2 mil comentários, muitos de quem conheceu o trabalho de Igor apenas agora, multiplicando o alcance da sua arte. Outros são de seus muitos amigos virtuais, a quem dava conselhos sobre ilustrações, dúvidas e aspirações.
A admiração e gratidão por Igor se repetem nos comentários: "Igor era uma das melhores pessoas que eu conheci. Ele sempre me incentivou a seguir com a arte e ouviu meu choro várias noites seguidas", "Sou muito grato de ter conhecido um cara muito compreensivo e atencioso", "Sempre me alegrava ao vê-lo aqui. Me ajudou e aconselhou com muita coisa", "Uma pessoa de bom coração, sempre disposto a ajudar o outro".
A notícia de sua morte chegou até a um ídolo: o dublador do super-homem no Brasil, Guilherme Briggs, que publicou nas redes algumas ilustrações feitas por Igor e o link para seu portfólio, pedindo uma oração e "muito amor, luz e energia positiva" para o rapaz.
A família ficou emocionada ao ver o reconhecimento do talento do caçula. "Infelizmente, por conta dessa doença e dos nossos governantes, a vida dele foi interrompida", diz Thiago.
Mas, para ele, Igor viveu fazendo tudo o que amava e agora depois da morte conseguiu se realizar. "Seu sorriso e sua arte vão ficar."
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