É enganoso o vídeo no qual um médico defende o uso da hidroxicloroquina no tratamento precoce contra a covid-19. Na gravação, publicada no Instagram em 18 de maio, o profissional se refere ao medicamento como “remédio antimalárico” e diz que ele tem “uma ação antiviral muito potente”. Não é verdade, pois ele não age contra nenhum vírus, segundo a bula aprovada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
Os próprios fabricantes do medicamento, com exceção do Exército, não recomendam o remédio contra o coronavírus. Em outubro de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) rejeitou de forma conclusiva e, em dezembro, contraindicou “fortemente” essa utilização do medicamento, que, mesmo sem eficácia comprovada contra a doença, continua sendo defendida pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido).
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Procurado, o médico Guilherme Sorrentino afirmou que tratou seus pacientes “e, graças à hidroxicloroquina”, teve “muito sucesso”. E completou: “Em tempo, não devo explicação nenhuma para uma pessoa que eu não conheço”.
Como verificamos?
O Comprova buscou as verificações que já publicou sobre a hidroxicloroquina e também pesquisou reportagens sobre o medicamento e comunicados de órgãos como OMS, Anvisa e os fabricantes do medicamento.
Além disso, entrevistou, por telefone, a biomédica Ana Paula Herrmann e o pós-doutor em Química Medicinal Adriano Defini Andricopulo, depois que ambos assistiram ao vídeo.
A equipe buscou informações sobre o autor do vídeo, Guilherme Sorrentino, e trocou mensagens com ele via Instagram.
Por último, o Comprova entrou em contato com a assessoria do Hospital Albert Einstein para verificar o posicionamento da instituição em relação à hidroxicloroquina.
O Comprova fez esta verificação baseado em informações científicas e dados oficiais sobre o novo coronavírus e a covid-19 disponíveis no dia 25 de maio de 2021.
Verificação
No vídeo, com quase 10 minutos de duração, o cirurgião Guilherme Sorrentino começa a sua apresentação pedindo que as pessoas compartilhem o conteúdo, alegando que o objetivo é ajudar. O médico admite que não é especialista na área, mas discorre sobre remédios que não têm eficácia para a covid-19. Num dos trechos, ele diz que vai tirar o vídeo do ar “em breve” porque não quer se incomodar.
Depois, Sorrentino faz referência a mecanismos que explicariam a razão para adotar o medicamento no combate ao coronavírus (eles serão tratados abaixo). O professor Adriano Andricopulo, da USP, aponta que mecanismos testados no início da pandemia foram descartados porque se verificou que a cloroquina não é eficaz para a covid-19.
Ele também cita outros medicamentos – também sem eficácia comprovada contra a doença. Ao longo de toda a gravação, Sorrentino usa vários termos científicos, dificultando a compreensão do conteúdo por leigos, como constata Andricopulo. “É uma estratégia: fala coisas difíceis, fora do alcance das pessoas que vão assistir ao vídeo, e passa adiante a fake news”, avalia.
O que dizem especialistas
A biomédica e professora da UFRGS Ana Paula Herrmann também afirma que o conteúdo do vídeo está equivocado. Ela observa que Sorrentino mistura algumas poucas informações corretas com outras totalmente erradas para justificar o uso da cloroquina em pacientes com a covid-19, remédio que já se comprovou não ter eficácia para a doença.
Um dos exemplos citados pela professora é a “porta de entrada” do Sars-Cov-2 (o coronavírus que causa a covid-19) no organismo. De fato, a proteína ACE-2 tem esse papel, como disse Sorrentino, mas não é verdade que a cloroquina tenha o efeito de inibir a entrada, como também declarou o médico no vídeo.
Sorrentino ainda faz referência à função imunossupressora da cloroquina, um dos benefícios da droga para pacientes com doenças autoimunes, como o lúpus, exemplifica Ana Paula. Contudo, explica a professora, a ação imunossupressora poderia ter efeito apenas na fase inflamatória da doença, ou seja, em pacientes graves e internados e, por isso, não teria sentido em um “tratamento precoce”.
“Todo o vídeo tem um certo verniz científico, usa termos sobre a biologia das células, do vírus, mas é equivocado. As pessoas ouvem sobre Complexo de Golgi, lisossomos, e podem pensar que ele sabe do que está falando, mas o vídeo tem um monte de informação incorreta e nenhuma evidência científica (para o uso da cloroquina contra a covid-19)”, ressalta Ana Paula.
Outro aspecto observado pela professora é o trecho em que Sorrentino aborda a “alcalinização do sangue.” Ana Paula trata esse ponto como uma “grande bobagem” que, segundo ela, já há muito tempo, antes dos aplicativos de mensagem se popularizarem, circulava em forma de power point por e-mail. “O pH do sangue é extremamente regulado e dizer o contrário é uma completa besteira”, garante.
Para Adriano Defini Andricopulo, as declarações de Sorrentino se resumem à desinformação. Ele lembra que, no início da pandemia, mecanismos citados pelo cirurgião até eram possíveis de se admitir quando foram realizados os ensaios in vitro (laboratório). “Mas, depois, quando feitos os testes com células do trato respiratório, foi constatada a ausência de benefícios”, ressalta o professor, reforçando posicionamento crítico ao fato de que ainda hoje, após inúmeras evidências como os alertas da Organização Mundial de Saúde (OMS), a cloroquina seja divulgada para o tratamento de casos de coronavírus.
“É preciso ficar claro para as pessoas que está sendo feita a indicação de um medicamento que não funciona para a covid-19 e, mais do que isso, há o risco de provocar arritmia cardíaca e outros efeitos adversos. Ou seja, não tem benefício e ainda pode afetar a saúde do indivíduo”, frisa o professor, com mais de 30 anos de experiência na área de fármacos.
Ineficácia
O apoio ao medicamento se disseminou após a publicação, em março de 2020, de um estudo conduzido pelo francês Didier Raoult. Segundo a pesquisa, o uso da cloroquina teria curado 75% dos pacientes com covid-19 em seis dias. Mas o estudo foi alvo de críticas da revista Science, referência em estudos científicos, e seus resultados foram questionados e considerados incompletos.
O então presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, passou a apoiar o medicamento e, logo depois, Jair Bolsonaro (sem partido) encampou o mesmo discurso. Já em 21 de março de 2020, Bolsonaro anunciou que o Exército ampliaria a produção do remédio no país para pacientes com o coronavírus. Quatro dias depois, o Ministério da Saúde emitiu uma nota técnica autorizando seu uso em pacientes graves.
Nos meses seguintes, Bolsonaro demitiu dois ministros da saúde, Luiz Henrique Mandetta, em 16 de abril, e Nelson Teich, em 15 de maio. Ambos são médicos e se opunham à prescrição de cloroquina para tratar pacientes com quadros leves da doença.
Em 20 de maio, o Ministério da Saúde, já tendo como ministro interino o general Eduardo Pazuello, passou a orientar o uso da cloroquina e da hidroxicloroquina no “tratamento medicamentoso precoce” de pacientes com o novo coronavírus, mas ressaltava que “ainda não há meta-análises de ensaios clínicos multicêntricos, controlados, cegos e randomizados que comprovem o benefício inequívoco dessas medicações para o tratamento da covid-19”.
Só naquele mês, o Comprova publicou quatro verificações sobre o uso da cloroquina – todas com a etiqueta de conteúdo enganoso.
Enquanto o chefe do governo federal defendia o medicamento sem eficácia comprovada, alguns médicos do Brasil todo passaram a fazer o mesmo. Começaram a surgir falsas teorias de que cidades, como Porto Feliz, teriam evitado mortes pelo vírus por terem adotado o tratamento com o remédio.
Ainda em outubro de 2020, a OMS rejeitou de forma conclusiva o uso da cloroquina no combate ao coronavírus e, quatro meses depois, a Apsen, maior fabricante do medicamento no Brasil, afirmou que não recomendava que ele fosse usado para este fim. Outras três farmacêuticas –Farmanguinhos/Fiocruz, EMS e Sanofi-Medley já haviam feito declarações nesse sentido. A Cristália, outra das seis fabricantes, divulgou um texto em março deste ano em que um representante ressaltou: “Não vendo nenhum produto fora do que a Anvisa autorizou. Ela autoriza para algumas coisas, como malária, mas não tem nada a ver com covid. Na minha bula, que é dada pela Anvisa, só forneço cloroquina para estes fins específicos”. O sexto produtor é o Laboratório do Exército, pertencente ao governo federal, que continua defendendo o medicamento.
Testes para pacientes com HIV
Durante o vídeo, Guilherme Sorrentino ainda menciona a existência de estudos com a cloroquina para a Aids, que estariam apresentando resultados positivos, mas foram interrompidos.
De fato, segundo a professora Ana Paula Herrmann, a droga foi testada para diversas infecções virais, como a provocada pelo HIV, mas não houve comprovação da sua eficácia para tratar outras doenças além daquelas para as quais já é indicada.
Ela conta que, em uma revisão sistemática relativamente recente, há pelo menos seis estudos sobre o uso de cloroquina ou hidroxicloroquina para HIV. Cinco desses estudos são ensaios clínicos controlados, realizados de 1995 a 2016, e o que apresenta o menor risco de viés (possibilidade de distorção) e usou mais pacientes não encontrou nenhum efeito da droga para HIV.
“De forma geral, são estudos pequenos, que não passam de 50 participantes em cada grupo, e com alto risco de viés”, pontua.
A professora diz que também foi avaliado o efeito da substância em outras infecções virais, tais como gripe, hepatite C e dengue, mas não se chegou a nenhum resultado substancial.
Ela afirma ainda que os resultados foram observados em ensaios in vitro e reforça que nem tudo o que é alcançado em laboratório pode ser aplicado em seres humanos.
“A maioria das coisas in vitro não funciona na clínica. Então, não quer dizer que, se inibe a replicação viral in vitro, vai ter efeito clínico. São situações completamente diferentes. Existem estudos clínicos da cloroquina para HIV, sim, mas nada que demonstre de maneira robusta a sua eficácia para esta ou outras condições virais”, finaliza Ana Paula.
Outros remédios
Sorrentino também engana quando se refere a outros medicamentos, também sem citar seus nomes. “Eu falei sobre um remédio (a hidroxicloroquina); e os outros… o remédio para piolho? Também funciona. O remédio para verme? Também funciona”, diz ele, no vídeo.
O médico pode estar se referindo apenas à ivermectina, que combate piolhos e vermes, ou à ivermectina e outros, como o vermífugo nitazoxanida.
Em todo caso, embora ambos já tenham sido defendidos por Jair Bolsonaro, não há até aqui nenhum medicamento com eficácia comprovada contra o coronavírus. A ivermectina, segundo o bulário eletrônico da Anvisa, “é indicada para o tratamento de várias condições causadas por vermes ou parasitas” e funciona no tratamento de infecções como “estrongiloidíase intestinal, oncocercose, filariose (elefantíase), ascaridíase (lombriga), escabiose (sarna) e pediculose (piolho)” – ou seja, não combate o coronavírus.
Ainda de acordo com a própria Anvisa, as “indicações aprovadas para a ivermectina são aquelas constantes da bula” , segundo comunicado do órgão em 10 de julho de 2020.
Outro antiparasitário, a nitazoxanida, também foi defendido pelo governo Bolsonaro. Segundo a bula da Anvisa, ela “age contra protozoários por meio da inibição de uma enzima indispensável à vida do parasita”, o que também “parece ocorrer em relação aos vermes, embora outros mecanismos, ainda não totalmente esclarecidos, possam estar envolvidos”. O medicamento também funciona contra vírus: “a ação se dá através da inibição da síntese da estrutura viral, bloqueando a habilidade do vírus em se replicar”.
Em outubro do ano passado, o Ministério da Ciência, Tecnologia e Informação publicou que o medicamento era eficiente contra o coronavírus, mas o estudo, em preprint, foi criticado por falhas e mostrou resultado similar ao do placebo.
O autor do vídeo
Em seu perfil no Instagram, e também no Linkedin, Guilherme Sorrentino se apresenta como cirurgião plástico. Na primeira rede, ele informa atuar em Porto Alegre. Em uma busca pelo seu nome no Google, um dos resultados leva para o site de Victor Sorrentino, que oferece um curso on-line chamado Vida & Saúde, para “você poder cuidar da saúde, física e emocional, de uma maneira muito mais completa e eficaz”.
Já uma pesquisa no Conselho Federal de Medicina (CFM) traz duas inscrições. A mais antiga é de 9 de janeiro de 2008 e exibe como “especialidades/áreas de atuação” cirurgia geral e cirurgia plástica. Na mais recente, de 31 de janeiro de 2011, ele aparece como “médico sem especialidades registradas”.
No vídeo verificado aqui, ele diz estar atuando na linha de frente da pandemia, mas o Comprova não conseguiu checar essa informação. A reportagem perguntou para ele onde ele está atendendo pacientes com covid, mas ele não respondeu essa questão.
Ao primeiro contato do Comprova ele respondeu ter tido sucesso tratando pacientes com hidroxicloroquina e que não devia explicação nenhuma para a reportagem. “Se quiser agendar uma consulta, eu mostro o artigo e ensino muito mais sobre a covid do que os teus colegas da mídia”, escreveu.
Uma das perguntas feitas pelo Comprova foi sobre a seguinte afirmação que ele faz no vídeo: “(Quero) Agradecer aos meus amigos, aos pacientes que confiam em mim, que estão também utilizando das minhas informações para não só se tratarem mas para poder tratar familiares e amigos”. Sorrentino afirmou que eles “usam informações gerais, como alimentação, suplementação, hábitos saudáveis, uso de máscara e álcool gel. Além de orientações sobre como saber quando está com suspeita de covid e a quem recorrer. Em nenhum momento oriento utilizar medicações que, obviamente, precisam ser prescritas e carimbadas por médico”.
Ao final, ele enviou uma apresentação com o logotipo do Hospital Albert Einstein, de São Paulo, com o título “Hidroxicloroquina, um composto menos tóxico que a cloroquina, é capaz de inibir a replicação do Sars-CoV-2 in vitro”, afirmando que “não precisamos ir muito longe para saber sobre a farmacologia da Hidroxicloroquina”. Mas, como informa o título, trata-se de um estudo in vitro, o que não comprova a eficácia no tratamento em humanos. Além disso, consultado, o Einstein afirma que não apoia o uso deste medicamento contra a covid.
Por que investigamos?
Em sua quarta fase, o Projeto Comprova investiga conteúdos possivelmente falsos ou enganosos sobre a pandemia que tenham alcançado alto grau de viralização nas redes sociais, como o vídeo verificado aqui, que foi visualizado mais de 5.860 vezes no perfil do médico no Instagram.
Conteúdos suspeitos sobre medicamentos sem eficácia comprovada colocam a população em risco, pois podem dar a entender que basta tomar o remédio para estar imune ao coronavírus, o que é mentira. É importante que todos saibam que é preciso seguir as medidas realmente eficazes na redução dos casos de covid-19, como a vacinação, o uso de máscaras e álcool em gel, a lavagem das mãos e o distanciamento social.
Materiais como esse já foram alvo de várias checagens do Comprova. O projeto mostrou, por exemplo, que é falso que 52 municípios tenham zerado o número de mortes ao supostamente adotarem o “tratamento precoce” e que um protocolo italiano de atendimento domiciliar não tem relação com o conjunto de remédios sem eficácia comprovada.
Enganoso, para o Comprova, é qualquer conteúdo que usa dados imprecisos ou que induz a uma interpretação diferente da intenção de seu autor; e o conteúdo que confunde, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.