No fim de março, a autônoma Sandra Souza fez um desabafo em seu perfil no Facebook. "Minhas recordações do ano passado são as piores possíveis", escreveu.
Na publicação, ela lamentou o primeiro ano da morte da mãe, a aposentada Maria Lopes de Souza. A idosa, que tinha 66 anos, faleceu na manhã de 26 de março de 2020, em decorrência da covid-19. Foi a primeira pessoa a morrer em razão da doença em Goiás — o segundo óbito no Estado foi registrado cerca de uma semana depois.
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'Não sei que será de nós', diz um dos seis filhos de vítima de feminicídioProfessores da rede municipal de São Paulo encerram greve após 117 diasAcusada de matar o marido no DF desabafa: 'Daria tudo para voltar no tempo'Entidade médica recomenda vacinar todas as grávidasO vídeo compartilhado por Sandra é um trecho de uma live de Bolsonaro na noite de 26 de março de 2020. Na transmissão, o presidente comentou sobre a primeira morte pela covid-19 em Goiás. Sem citar o nome da idosa, ele falou sobre doenças pré-existentes que, segundo ele, a aposentada possuía.
"Hoje Goiás anunciou uma morte (pela covid-19). E essa pessoa que faleceu lá tem três outras enfermidades", declarou Bolsonaro.
"A gente lamenta. Pelo que vi, o coronavírus é a enfermidade menos grave que ela adquiriu. Então, o somatório de problemas, a vida pregressa da pessoa, fraca muitas vezes, com problemas outros, que se chamam comorbidades… duas ou mais (doenças)... Mas mesmo assim a gente lamenta", completou o presidente durante a live.
Mais de um ano depois, Sandra mantém a indignação que teve ao assistir pela primeira vez a declaração do presidente sobre a mãe dela. "A revolta é muito grande pela forma como ele falou. Ele disse que a minha mãe era fraca e doente, mas ela estava bem. Ela teve covid e faleceu por isso. Ela tinha bronquite e hipertensão, que estavam tratadas", diz Sandra, filha caçula da idosa.
"É muito revoltante pelo desdém (do presidente) com a morte e a falta de empatia. Foi muito desrespeitoso falar daquela forma. Ele falou como se a minha mãe fosse "moribunda" antes de pegar a covid-19. Isso não é verdade", acrescenta Sandra à BBC News Brasil.
Para ela, Bolsonaro tentou reforçar um discurso negacionista em relação à pandemia ao tentar reduzir a relevância da covid-19 na morte da aposentada.
Maria não tinha três doenças pré-existentes como o presidente citou, segundo informações atuais da Prefeitura de Luziânia (GO), cidade em que a idosa morava. E a certidão de óbito da idosa desmente a afirmação de Bolsonaro de que a covid-19 foi a enfermidade menos grave: a doença é citada no documento como a principal causa da morte dela.
A reportagem questionou o Palácio do Planalto sobre a declaração de Bolsonaro referente ao óbito de Maria. Porém, o governo federal não se pronunciou.
Primeira morte pela covid-19 em Goiás
Maria tinha três filhos e nove netos. Ela e o companheiro, o aposentado Paulo Alves de Souza, estavam juntos havia 47 anos. O casal de idosos se dividia entre uma casa na área urbana de Luziânia e uma chácara na zona rural da cidade goiana vizinha a Brasília.
A idosa e o marido tiveram os primeiros sintomas da covid-19 em meados de março do ano passado. Segundo a família, a princípio eles foram diagnosticados com pneumonia e suspeita de dengue.
Na época, o Brasil ainda registrava oficialmente as primeiras infecções e mortes pela covid-19. Em Goiás havia poucas dezenas de casos confirmados. Em Luziânia não havia nenhum registro da doença. Em razão disso, diz Sandra, os médicos não cogitaram, a princípio, que os pais dela pudessem ter sido infectados pelo novo coronavírus.
Mas a situação de Maria e Paulo piorou cada vez mais. Dias depois da primeira consulta, os dois voltaram ao hospital. Os médicos passaram a desconfiar que poderia ser um caso de covid-19, por conta dos sintomas respiratórios e do baixo nível de saturação de oxigênio no sangue da idosa — uma das características da doença.
A família acredita em duas possibilidades para a infecção do casal: durante uma ida de Paulo a Brasília, na qual pegou quatro ônibus, ou em uma igreja que Maria frequentou. As duas situações ocorreram pouco antes dos primeiros sintomas da doença.
Diante da suspeita de covid-19, o casal foi isolado. Maria teve a situação mais grave e foi encaminhada para um hospital da capital goiana. A idosa passou por exame que confirmou, no dia anterior à sua morte, que ela havia sido infectada pelo novo coronavírus.
Paulo conseguiu se recuperar. A esposa dele, porém, não resistiu e morreu em 26 de março, horas após ser intubada.
"Só ficaram as melhores lembranças dela. Da mãe e da avó que ela foi", desabafa Sandra.
A declaração de Bolsonaro
Enquanto vivia a dor da perda da mãe, Sandra soube por conhecidos que o óbito de Maria havia sido citado por Bolsonaro durante a tradicional transmissão do presidente no Facebook.
Na live de 26 de março de 2020, Bolsonaro recebeu o presidente da Caixa Econômica Federal, Pedro Guimarães, para falar sobre o auxílio emergencial de R$ 600, que começaria a ser distribuído no país.
Guimarães e a intérprete de libras Elizângela Castelo Branco, que estava ao lado de Bolsonaro, apareceram com máscaras. Já o presidente estava sem o item — postura que se tornou comum para Bolsonaro nos períodos seguintes, ignorando recomendações sanitárias.
Antes do comentário sobre a morte de Maria, Bolsonaro afirmou que não queria que houvesse nenhum óbito pelo novo coronavírus no país. "Mas esse vírus é igual a uma chuva, fechou o tempo, trovoada e você vai se molhar. E vamos tocar o barco!", declarou o presidente na live.
Sandra relata que decidiu assistir ao comentário de Bolsonaro sobre a mãe dela apenas semanas depois. Ela explica que sempre teve "asco" das declarações do presidente e nunca imaginou que um dia teria uma situação relacionada à sua família citada por ele. "A minha mãe detestava ele", diz.
O sofrimento da família se tornou ainda maior quando os parentes de Maria assistiram ao comentário de Bolsonaro, diz Sandra. "Foi terrível", resume.
Para ela, Bolsonaro decidiu citar o caso da mãe dela para tentar fazer com que as pessoas acreditassem que pacientes com a covid-19 morrem por doenças que já possuíam, não pela doença causada pelo novo coronavírus.
Segundo os estudos, pacientes com doenças pré-existentes são mais suscetíveis a um quadro grave da covid-19. Porém, quando há óbitos nesses casos, a enfermidade causada pelo novo coronavírus é considerada o principal motivo da morte. Isso porque essas pessoas poderiam viver por anos ou décadas com as comorbidades que possuíam, desde que controladas, mas têm o quadro de saúde agravado pela ação do Sars-Cov-2 (nome oficial do novo coronavírus).
A certidão de óbito de Maria cita a covid-19 como principal causa da morte dela e menciona duas comorbidades que teriam agravado a enfermidade: doença pulmonar obstrutiva crônica e diabetes.
No dia em que Maria morreu, a Secretaria Estadual de Saúde de Goiás divulgou que a idosa era hipertensa, tinha diabetes e doença pulmonar obstrutiva crônica.
Foi justamente com base na informação do governo de Goiás, acredita Sandra, que Bolsonaro citou as comorbidades de Maria.
Em nota à reportagem, o governo de Goiás argumenta que "os dados sobre óbitos são consolidados a partir das informações notificadas pelos profissionais dos serviços de saúde nos sistemas oficiais do Ministério da Saúde".
"Na declaração de óbito preenchida e enviada pelo município (Luziânia), consta doença pulmonar obstrutiva crônica não especificada e diabetes mellitus não especificada na parte destinada ao relato de comorbidades preexistentes", diz nota do governo de Goiás.
A Prefeitura de Luziânia afirma, em nota, que uma investigação da vigilância epidemiológica do município confirmou, após a morte da idosa, que houve equívoco nas informações da certidão de óbito dela. Segundo a pasta, Maria "possuía apenas hipertensão arterial".
'Acho que não vou sair do luto nunca'
A revolta pela declaração de Bolsonaro sobre a sua mãe é uma situação que Sandra considera que nunca irá superar. "Fico com a cabeça tão quente quando falo desse assunto", confessa.
"Passei muita raiva quando a minha mãe morreu, porque os bolsonaristas apareciam em qualquer notícia sobre a morte dela para falar que não era covid. Ficavam tentando justificar a morte dela por outras causas, como se a covid fosse só mais um detalhe", relata Sandra.
Na publicação no Facebook, em março deste ano, Sandra escreveu que sente pena de quem idolatra Bolsonaro. "Se fizessem parte das assombrosas estatísticas, assim como nós, ou se ele debochasse da morte de um familiar, como fez com minha mãe e faz com milhares de brasileiros, talvez pensariam diferente", escreveu a autônoma em seu perfil na rede social.
Ela acredita que outras milhares de pessoas que perderam parentes para a covid-19 no Brasil — a doença já matou mais de 473 mil pessoas no país — também podem ter se sentido ofendidas por sucessivas falas de Bolsonaro minimizando a doença.
"É uma falta de empatia (do presidente) não só com a minha mãe, mas com todas as mortes. Não tem respeito ou empatia por nenhum brasileiro que perdeu a vida. Isso é muito triste", diz Sandra à BBC News Brasil.
Desde a perda da mãe, a autônoma afirma viver dias difíceis. "Acho que não vou sair do luto nunca. Estou tomando remédio. A covid mudou muito a nossa família", afirma. Pouco após a morte de Maria, a filha foi diagnosticada com depressão e deu início a um tratamento com medicações.
Uma das situações mais difíceis para ela, no atual momento, é perceber que outras milhares de famílias brasileiras têm perdido diariamente entes queridos para a doença, enquanto Bolsonaro continua promovendo aglomerações e evita usar máscara.
"Toda vez que eu vejo um número diário de mortes, eu sinto a dor daquelas pessoas. A gente lamenta profundamente porque a gente já passou por isso e sabe o quanto dói", diz.
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