Jornal Estado de Minas

PROJETO COMPROVA

COVID-19: posts enganam ao comparar spray nasal com tratamento precoce

São enganosas postagens que traçam paralelo entre um spray nasal contendo hidroxicloroquina e ivermectina e o “tratamento precoce” com esses medicamentos pregado por grupos no Brasil e em outros países. O produto foi criado por um laboratório da Finlândia e teve apenas seu registro comercial aprovado nos Estados Unidos, não a sua aprovação para uso. O spray usa os componentes em doses menores e ainda não passou pela fase de testes que comprove sua eficácia para tratar a COVID-19.





Conteúdo verificado: Postagens em sites informam a patente obtida por uma empresa finlandesa para um medicamento contra a COVID-19 contendo ivermectina e hidroxicloroquina. Os textos comparam o fato ao “tratamento precoce”, no qual são prescritas as substâncias sem comprovação científica para uso desta maneira.

É verdade que uma companhia farmacêutica da Finlândia patenteou nos Estados Unidos um remédio para COVID-19 contendo hidroxicloroquina e ivermectina, mas, ao contrário do que afirmam textos em sites como Politz e Terra Brasil Notícias, isso não significa que essas substâncias sejam eficazes contra a doença provocada pelo coronavírus. A patente é apenas uma proteção comercial concedida para proteger os direitos intelectuais dos inventores de produtos e marcas. Ademais, ela não significa que o fabricante tenha obtido autorização para utilizar a droga nos Estados Unidos.

O medicamento em questão, um spray nasal, de fato, foi desenvolvido pela Therapeutica Borealis, uma empresa de Turku, cidade no sudoeste finlandês, e a obtenção da patente foi noticiada pelo site Yle, grupo de comunicação do país. O que os sites que divulgaram os textos verificados não explicam a seus leitores é que a patente foi obtida junto ao United States Patent and Trademark Office (USPTO), um órgão ligado ao Departamento de Comércio dos Estados Unidos.





A entidade responsável por aprovar o uso de medicamentos no território americano é a Food and Drug Administration (FDA), a agência reguladora ligada ao governo federal dos Estados Unidos. Em contato com o Comprova, a Therapeutica Borealis informou que ainda nem solicitou ao FDA a autorização para seu spray nasal.

Os conteúdos verificados utilizam a obtenção da patente para propagar o chamado “tratamento precoce”, um combo de medicações utilizado contra a COVID-19, mas sem comprovação científica e que é defendido pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e muitos de seus apoiadores. Além disso, desinformam pois a utilização de hidroxicloroquina e ivermectina prevista pela empresa finlandesa difere da realizada pelos médicos que aderiram à ideia do “tratamento precoce”, como explicou ao Comprova Bruno Rezende de Souza, doutor em Farmacologia Bioquímica e Molecular.

Por fim, nenhum dos sites brasileiros republicou o trecho da reportagem original que destaca o alerta da Organização Mundial da Saúde (OMS) contra o uso de ivermectina, exceto em ensaios clínicos, devido à falta de dados que demonstrem benefícios contra a COVID-19, assim como fizeram a Agência Europeia de Medicamentos e a FDA.





Como verificamos?

O Comprova iniciou a verificação analisando tuíte do usuário @PolitzOficial sobre a obtenção da patente nos Estados Unidos pela empresa finlandesa. O post destaca que a substância contém ivermectina e hidroxicloroquina e questiona se o “circo da CPI do Senado” convocará os finlandeses a prestarem esclarecimentos.

Um link no tuíte dá acesso a texto publicado no fórum Politz, que ironiza o trabalho da CPI e traz informações sobre a substância patenteada, traçando paralelo com o “tratamento precoce”.

Traz também o link da reportagem publicada pelo Yle, uma empresa nacional de mídia da Finlândia com quase um século de existência e considerada fonte confiável de notícias. O Comprova comparou os dois conteúdos e identificou que a versão brasileira omitiu importantes trechos do texto original, escrito em inglês.





A equipe verificou o site da empresa finlandesa, onde foi publicado comunicado sobre o assunto, informando o registro da patente 11.007.187. Este número foi verificado pelo Comprova junto ao USPTO.

A farmacêutica foi procurada via e-mail e o contato foi respondido pelo presidente do Conselho de Administração da Therapeutica Borealis, Kalervo Väänänen, que forneceu informações mais detalhadas sobre a substância patenteada. Pesquisamos como é feita a liberação de uso de medicamentos pela FDA, responsável pela aprovação e avaliação dos medicamentos em território norte-americano antes de serem disponibilizados ao mercado.

Por fim, conversamos com Bruno Rezende de Souza, doutor em Farmacologia Bioquímica e Molecular, que atua como professor associado no Departamento de Fisiologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Os responsáveis pelas duas publicações no Brasil também foram procurados. O Terra Brasil Notícias foi procurado via e-mail e não retornou. Já o responsável pelo Politz, procurado via Twitter, afirmou não ter interesse em se explicar e ameaçou acionar a Justiça caso identifique indício de práticas de crimes contra a honra ao ser abordado por verificadores. Declarou não reconhecer a legitimidade e competência legal das agências de checagem e publicou a troca de mensagens nos perfis do Politz no Twitter e no Instagram.

O Comprova fez esta verificação baseado em informações científicas e dados oficiais sobre o novo coronavírus e a COVID-19 disponíveis no dia 8 de junho de 2021.

Verificação

Spray nasal

O Yle, de fato, noticiou que a empresa finlandesa Therapeutica Borealis registrou patente nos Estados Unidos de um medicamento contra a COVID-19 contendo “doses baixas e seguras” de ivermectina e hidroxicloroquina, além de aprotinina, comumente usada em cirurgias cardiovasculares e do fígado para reduzir o sangramento.





A patente foi concedida pelo USPTO no dia 18 de maio de 2021, pouco mais de um ano após a solicitação da farmacêutica. O USPTO faz parte do Departamento de Comércio dos EUA e é responsável por fornecer patentes e registrar marcas. Já a Food and Drug Administration (FDA) integra o Departamento de Saúde dos EUA e é a agência reguladora responsável por aprovar o uso de medicamentos no país. O spray não é aprovado pela FDA e também não consta na lista de medicamentos autorizados pela agência para uso emergencial no tratamento da COVID-19.

Um comunicado sobre o assunto foi publicado no site da empresa, informando que a patente foi obtida do USPTO, no início de maio.

Tanto o documento liberado pelo órgão quanto as informações disponibilizadas no site da farmacêutica confirmam que as substâncias ativas do fármaco são, realmente, a ivermectina, a hidroxicloroquina e a aprotinina, e, de acordo com as cláusulas da patente, em dosagens baixas. O medicamento pode possuir, ainda, outros compostos como a bafilomicina e elementos combinados ou não, como amônio e camostato.

O laboratório explica que a substância deverá ser usada em spray nasal com três efeitos nos mecanismos celulares para prevenir e enfraquecer a capacidade do vírus de entrar no corpo e se replicar. “Dessa forma, é possível evitar a contração da doença e diminuir o risco de adoecimento grave”. O medicamento é tratado como “preventivo ou de ação precoce”, aliado à vacinação.





Embora a postagem do Politz compare o composto com hidroxicloroquina e ivermectina à forma como as substâncias são citadas no Brasil pelos defensores do “tratamento precoce”, a empresa inventora afirma que na substância patenteada esses componentes, junto com a aprotinina, são usados de maneira nova e direcionada na membrana mucosa do trato respiratório superior. “O uso direcionado possibilita menor dosagem das substâncias ativas, tornando o tratamento mais seguro e eficaz”.

A empresa ressalta, inclusive, que todas as moléculas de medicamentos no âmbito da patente foram aprovadas para o tratamento de outras condições, mas quando utilizadas de forma sistêmica, ou seja, como pílulas ou em infusões, as quantidades dos medicamentos são altas e podem causar efeitos adversos.

O laboratório acredita que em uso local, como spray nasal, por exemplo, essa concentração mais baixa das substâncias ativas possa prevenir o progresso e a replicação do vírus.





O comunicado traz a fala do presidente do Conselho de Administração da Therapeutica Borealis, Kalervo Väänänen, afirmando que completar o desenvolvimento do medicamento em um cronograma rápido é possível, pois as moléculas utilizadas são conhecidas em termos de segurança, e o desenvolvimento pode ser direcionado, segundo ele, para testes de Fase II de eficácia e eficiência em relação a diferentes doses e mecanismos de dosagem.

A publicação destaca que a patente é um marco em direção ao mercado e o próximo objetivo é encontrar uma empresa da indústria farmacêutica estabelecida e com escala de negócios internacional para a fabricação.

Procurado pelo Comprova, Väänänen informou por e-mail que a empresa apresentou pedido via Tratado de Cooperação de Patentes (PCT) para outros países, sem definir quais são. Afirmou, ainda, não ter sido solicitada a aprovação da FDA ou de qualquer outra agência reguladora. “Vai levar pelo menos um ou dois anos para realizar todos os procedimentos necessários para a droga entrar no mercado”, disse.





Reforçou que a principal estratégia para combater a COVID-19 deve ser a vacinação e que a droga, caso aprovada, deverá ser utilizada de forma preventiva ou em fase bem inicial da infecção viral, não para tratamento da doença avançada. “Como já mostrado, essas drogas são ineficazes se você já tem a doença’’, defende.

Patente não é autorização de uso

O Center for Drug Evaluation and Research (CDER) da FDA é responsável pela aprovação e avaliação dos medicamentos em território norte-americano antes deles serem disponibilizados ao mercado.

As empresas farmacêuticas que desejam vender medicamentos no país, precisam testá-los previamente em animais e humanos para, depois, enviar ao CDER a documentação com as evidências de segurança e eficácia. Uma equipe de médicos, estatísticos, químicos, farmacologistas e outros cientistas da agência são responsáveis por analisar dados, a rotulagem proposta pela empresa e verificar se os benefícios superam os riscos dos medicamentos. Caso a resposta seja sim, é liberada a venda.





Em alguns casos, a aprovação é acelerada, se a terapia medicamentosa for promissora em condições sérias de saúde ou com risco de vida e, ainda, se fornecerem melhores resultados em relação aos outros tratamentos disponíveis.

Com a pandemia do coronavírus, a FDA concedeu autorizações de uso emergencial nos Estados Unidos. Para que isso seja possível, é necessário o Secretário do Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos declarar apropriado que tais medidas sejam adotadas para tratar ou prevenir doenças graves. Como a COVID-19 se trata de uma doença infecciosa e com grande impacto na saúde pública, foi permitida a liberação para tratamento médico de medicamentos não aprovados.

No caso verificado, o spray nasal obteve patente nos Estados Unidos, mas isso não significa que o produto foi aprovado para uso no país. O USPTO faz parte do Departamento de Comércio dos EUA e é responsável por fornecer patentes e registrar marcas.





“Tratamento precoce”

A publicação no fórum Politz diz que a CPI instalada no Senado em abril de 2021 para investigar supostas omissões e irregularidades nas ações do governo federal durante a pandemia e que tem questionado fortemente a atuação em relação ao tratamento precoce é “a maior palhaçada do Senado Federal digna de um circo brasileiro” e questiona se os finlandeses serão convocados para darem explicações sobre o remédio baseado em medicamentos “na qual a ‘ciência’ brasileira (e parte internacional) jura de pés juntos que não possuem eficácia contra a praga chinesa”.

Como já divulgado amplamente pelo Comprova, a hidroxicloroquina e a ivermectina não são recomendadas pelos principais órgãos mundiais de saúde como tratamento para a COVID-19. No caso da cloroquina e da hidroxicloroquina, a ineficácia inclusive já está comprovada contra a doença, com ou sem a associação com o antibiótico azitromicina. Outras agências de checagem, como Lupa e Aos Fatos, também publicaram informações sobre o uso das drogas em relação à doença.

As publicações dos dois sites brasileiros desconsideram trecho da original que destaca o alerta da OMS contra o uso de ivermectina, exceto em ensaios clínicos, devido à falta de dados que demonstrem benefícios contra a covid-19, assim como a Agência Europeia de Medicamentos e a FDA. A agência reguladora americana também revogou a autorização de uso de emergência para cloroquina e hidroxicloroquina.





O Yle lembra, ainda, que a hidroxicloroquina foi anunciada como tratamento à COVID-19 pelo presidente Jair Bolsonaro e pelo ex-presidente americano Donald Trump, citação que o Politz define como “o mais engraçado disso tudo”, afirmando que os dois “defenderam o tratamento precoce que, segundo o nosso entendimento e trackings de estudos publicados, possuem sim uma certa eficácia no combate à COVID-19, a depender da dose, estágio da doença, dentre outros fatores, mas isso já foi demonstrado imensamente por nós em nossas publicações”.

O que diz o especialista?

Bruno Rezende de Souza, doutor em Farmacologia Bioquímica e Molecular e professor associado da UFMG, analisou a patente do spray nasal e explicou as diferenças dele para o tratamento precoce defendido por alguns grupos e que incluem a ivermectina e a hidroxicloroquina.

De acordo com ele, o medicamento em cápsula necessita passar pelo metabolismo de primeira passagem – do intestino para a corrente sanguínea – e pelo metabolismo de segunda passagem – fígado – para se transformar na estrutura química que irá agir nos órgãos alvos.





Muitos desses remédios usados pelos defensores do tratamento precoce, como a hidroxicloroquina, são sais que precisam passar por esses processos e, sem controle, podem interagir com outros. “Mesmo que se fale que o efeito (colateral) é muito pequeno, pode ser que a via em que essas drogas atuam seja a mesma de outra droga que realmente funcione para COVID-19 e elas vão competir. A gente sabe que ela não funciona, há muitos trabalhos, pesquisas, no mundo inteiro, mostrando que não funciona”.

Acrescenta, ainda, que devido aos efeitos colaterais da droga serem pequenos as pessoas sentem-se confortáveis para testarem, mas acabam sentindo segurança e, consequentemente, se expõem mais ao vírus.

Sobre o spray nasal, ao analisar a patente, o farmacologista elogiou a ideia patenteada, destacando haver uma hipótese forte porque a sugestão não é de ingestão do medicamento como o conhecemos.





“Eles usam a premissa de dados que já existem há muito tempo. Colocam que a ivermectina funciona para isso, a hidroxicloroquina para aquilo, colocam tudo lá na patente, e falam que é de 1% a 10% do que é utilizado normalmente. É uma quantidade muito pequena, muito menor que a que está sendo utilizada aqui, bem mais diluída. A hipótese é interessante porque estão usando base de dados que são in vitro, ou seja, foram feitos com células, e mudando o pH, colocando mais ou menos hidrogênio, o vírus tem mais dificuldade para se ligar à célula. A hipótese que estão levantando é honesta, só que a ciência tem contra-intuitivo, então agora é necessário testar.”

O cientista discorda, entretanto, que os desenvolvedores conseguirão autorização para iniciar os testes pela Fase 2 (em pessoas). “Eles acham possível porque são agentes farmacológicos que já funcionam, mas esses agentes estão no mercado para cápsula, não para mucosa do nariz. A mucosa do nariz é perigosa porque é um caminho muito direto para o cérebro. A pergunta é: usando hidroxicloroquina será que vai ter como efeito perder o olfato? Será que pode ter algum efeito que vai causar um transtorno psiquiátrico? Porque você está expondo o nariz ao agente farmacológico. Tem que ser testado.”

Para isso, diz, os testes precisam ser feitos antes em animais. “Mesmo que se saiba a concentração em doses sistêmicas, em doses nasais não há nenhum resultado. Tem que ser camundongo, todos os testes em animais, para depois passar para a segunda fase e terceira fase. Tenho certeza que a FDA não vai deixar passar direto para a segunda fase.”





Bruno Rezende explica, ainda, que o spray possivelmente não protegerá o pulmão, por onde ocorre a maior parte da infecção pelo vírus. “Não significa que essa concentração de hidroxicloroquina e ivermectina vai chegar ao pulmão e proteger ele. São muitas regiões do trato respiratório que essa droga teria que atingir”.

Os sites que publicaram o conteúdo enganoso

Com mais de 145 mil seguidores no Twitter, o Politz mantém um fórum onde afirma ser “a primeira e única comunidade brasileira que oferece um espaço totalmente seguro, livre de censuras ou perseguições ideológicas”. Esta não é a primeira vez que o Comprova verifica textos publicados pela página.

Procurado pela reportagem, via mensagem direta no Twitter, o responsável pelo Politz se identificou como “Pedro” e afirmou não ter qualquer interesse em se explicar, ameaçando acionar a Justiça caso haja indício de práticas de crimes contra a honra dele ou do site ao ser abordado por verificadores.





Declarou não reconhecer a legitimidade e competência legal das agências de checagem, alegando haver posicionamento ideológico delas e cerceamento da liberdade de expressão e pensamento.

Sugeriu que fosse verificada a fonte originária disponibilizada ao final da reportagem – o que já havia sido feito pela Reportagem quando o site foi procurado – justificando que todas as publicações do Politz “seguem exatamente as fontes sempre citadas, sem tirar nem por, separando muito bem os fatos de opiniões”. Em seguida, o print da conversa foi postado no perfil do Politz no Twitter e no do Instagram.

O Terra Notícias Brasil, que também já foi verificado pelo Comprova, não respondeu o e-mail enviado pela equipe e afirma ser um site nascido da insatisfação de três irmãos com “notícias cotidianas e muitas vezes distorcidas”. Afirma publicar “notícias sempre checadas, feitas com cuidado, seriedade e carinho”.





Por que investigamos?

Em sua quarta fase, o Comprova verifica conteúdos sobre a pandemia, caso desta verificação, e políticas públicas do governo federal que tenham viralizado nas redes sociais. O post em questão teve 1,9 mil interações no Twitter até o dia 7 de junho. Não há constatação científica de que remédios usados no tratamento precoce, como a ivermectina e a hidroxicloroquina, sejam eficazes para tratarem a COVID-19.

Ao apoiar medicamentos sem eficácia comprovada, o conteúdo coloca a população em risco, já que as medidas conhecidas até o momento para prevenção e controle do novo coronavírus são o uso de máscara, a higienização constante das mãos, o distanciamento social e a vacinação.

Enganoso, para o Comprova, é o conteúdo retirado de contexto original e usado em outro de modo que seu significado sofra alterações; que usa dados imprecisos ou que induz a uma interpretação diferente da intenção de seu autor; ou ainda aquele que confunde, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.

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