Ele é um dos 123 menores de idade do Brasil que cruzaram a fronteira do México com os Estados Unidos sem a companhia de adultos responsáveis por eles — segundo a lei americana, só os pais ou um guardião ou tutor oficial são considerados responsáveis legais por menores de 18 anos. Esse número, referente ao ano fiscal de 2021 até maio, é recorde, segundo a Alfândega e Proteção de Fronteiras dos Estados Unidos.
A história do bebê é simbólica do fenômeno e revela os perigos e sofrimentos de uma jornada imigratória irregular que tem se tornado cada vez mais popular entre brasileiros que querem tentar a vida no país, mas não têm visto para isso.
Apenas em abril e maio, na média, os agentes americanos encontraram ao menos um menor de idade brasileiro desacompanhado dos responsáveis por dia.
Embora possa surpreender, o número é pequeno se comparado às 80 mil crianças e adolescentes de diferentes nacionalidades que fizeram o trajeto até maio do ano fiscal de 2021, gerando uma crise administrativa no governo do democrata Joe Biden.
A história de como João chegou aos Estados Unidos, no entanto, não lembra as cenas da câmera de segurança no Texas, que, em março, flagraram o momento em que duas meninas equatorianas eram lançadas de cima do muro que divide a fronteira. Sozinhas na escuridão da noite, ambas foram detidas por agentes americanos, que as levaram ao hospital.
Já o bebê brasileiro chegou nos braços dos avós. Segundo autoridades diplomáticas que atuaram no caso e o relataram à BBC News Brasil reservadamente, já que o processo é sigiloso, a família foi orientada por um coiote, como são conhecidos os traficantes de pessoas que atuam na área, a adotar uma estratégia arriscada.
Eles viajaram até o México em seis pessoas: os avós, os pais, um adolescente e um bebê. Pretendiam entrar juntos nos Estados Unidos, assim como já fizeram quase 22 mil brasileiros nos primeiros cinco meses de 2021, o maior número da série histórica de registros.
Antes de atravessar a fronteira, no entanto, a família foi separada em dois grupos: os pais seguiram com o filho adolescente e chegaram ao seu destino final no país. Os avós ficaram com o bebê e jamais conseguiram concluir a viagem.
Estratégia 'cai-cai' e teatro de 'pais e filhos'
A família tentou usar um artifício conhecido no jargão da rede migratória como "cai-cai". Funciona assim: um ou dois adultos, responsáveis legais por uma criança, cruzam a fronteira junto com ela e se apresentam às autoridades. Como os Estados Unidos não podem manter menores de 18 anos presos nos mesmos centros de detenção para adultos e tampouco têm separado as famílias, na maior parte dos casos, os adultos apenas recebem uma notificação para se apresentar à Justiça em uma data futura e são liberados na sequência em território americano. Boa parte nunca comparece nos tribunais e estabelece a vida no novo país, sem documentos.
"Espalhou-se nessa comunidade uma percepção muito forte de que estar com uma criança para fazer essa travessia torna a chance de ser deportado ou preso muito menor, o que é verdade. E, por isso, nos últimos anos vemos que mais e mais pessoas lançam mão disso", afirmou à BBC News Brasil Sueli Siqueira, socióloga da Universidade Vale do Rio Doce e especialista em imigração de brasileiros para os Estados Unidos.
Era exatamente essa a tentativa dos avós com o bebê, segundo os relatos feitos pela família às autoridades envolvidas no caso. Mas as autoridades imigratórias às quais os três se apresentaram desconfiaram da situação. Os avós não tinham qualquer documentação para provar que fossem os responsáveis legais pelo bebê e, no contato com os agentes, deixaram essa informação escapar.
Por lei, apenas os pais ou pessoas expressamente autorizadas por eles, por meio de documentos com validade internacional, podem se deslocar com crianças de um país para outro.
Os agentes americanos colecionam histórias sobre "aluguel" de menores de idade para auxiliar na travessia de adultos na fronteira ou sobre tráfico de crianças e por isso são rigorosos com a comprovação do vínculo entre adultos e menores que se apresentam a eles.
De acordo com a socióloga, nesse ponto, os imigrantes muitas vezes se valem de uma certa encenação. Nos últimos dois anos, Siqueira acompanhou pessoalmente cinco casos de brasileiros adultos que atravessaram a fronteira com crianças entre 8 e 13 anos que não eram suas filhas ou parentes. Segundo ela, para obter sucesso na empreitada, eles precisaram sustentar que eram pais e filhos ou seriam separados pelos americanos.
"Há casos em que esses adultos — que são amigos, conhecidos ou parentes distantes dos pais das crianças que farão a travessia — passam alguns dias com o menor ensaiando chamá-la de filho e sendo chamado de 'pai' ou 'mãe', pra criar naturalidade e mostrar isso para os agentes", conta Siqueira.
Nos cinco casos acompanhados pela pesquisadora, a estratégia funcionou, e os adultos e crianças foram admitidos no país. Segundo ela, eram casos em que o pai ou a mãe verdadeiros da criança já estavam no país e queriam se reencontrar com os filhos.
"Todos eles sabem dos riscos, já ouviram histórias de pessoas que morreram na travessia, que acabaram separadas. Mas todo mundo sempre pensa apenas nos casos de sucesso e acha que isso só acontece com a família dos outros, que vão ter mais sorte do que aqueles com casos tristes", afirma a socióloga.
Avós para deportação, neto apreendido
Não foi assim para os avós de João. Diante da situação, as autoridades americanas determinaram a separação de avós e neto. Os primeiros foram remetidos a procedimentos de deportação.
O bebê foi encaminhado ao Departamento de Saúde e Serviços Humanos, que nos últimos meses têm vivido sobrecarregado por falta de vagas para acomodar a enorme quantidade de crianças desacompanhadas dos responsáveis, que, pela atual determinação americana, não podem ser deportadas.
No caso de João, no entanto, ele não poderia ficar em abrigos para crianças. Aprendendo a andar e a falar, sua condição era muito frágil e vulnerável, e foi preciso encontrar um novo lar temporário para o bebê brasileiro com urgência.
Depois de ser testado para covid-19, João foi enviado para uma casa de família americana na Virgínia, a cerca de 3 mil quilômetros da fronteira com o México.
Há hoje uma escassez de vagas em lares temporários, e o alojamento para João foi possível graças ao trabalho de uma ONG de cunho religioso que tem arregimentado voluntários pelo país para acomodar crianças vindas da fronteira. A ONG não quis ter seu nome divulgado nem dar declarações sobre o assunto à BBC News Brasil para garantir o sigilo da identidade de João e sua família.
Em paralelo, a mãe de João começava seu calvário pessoal. Primeiro, ela teve que enfrentar seu medo de ser deportada para poder ativamente buscar por notícias de seu filho.
Quando descobriu o paradeiro do bebê, foi preciso que ela tirasse documentos como passaporte, pra si e para João, além de uma segunda via da certidão de nascimento do filho. Mas não ficou nisso. Houve ainda a necessidade de que autoridades brasileiras entregassem às americanas o histórico criminal dela, sem nenhuma ocorrência de crime, para que ela pudesse ter direito a reaver o bebê em vez de ele ser encaminhado à adoção. Cada etapa da burocracia alongava o período longe do filho.
Consultado pela reportagem sobre o caso de João, o Departamento de Saúde e Serviços Humanos afirmou que "o Departamento de Segurança Doméstica encaminha para o serviços de lar temporário crianças não têm um dos pais ou o responsável legal com eles quando chegam aos Estados Unidos e, portanto, são consideradas desacompanhadas. Isso inclui crianças que chegam ao país com um parente que não seja um dos pais". O órgão diz ainda que "por uma questão de política, a fim de proteger a privacidade e a segurança da criança, não identifica nem faz comentários sobre casos específicos". E reafirma que a prioridade é manter esses menores "seguros, saudáveis %u200B%u200Be unidos aos membros da família o mais rápido possível, em segurança".
Ainda segundo o departamento, o objetivo do governo americano é sempre reunir a família, ainda que o status migratório dela não seja legal. De acordo com dados do órgão, em 80% dos casos a criança que passa pela fronteira desacompanhada tem familiares nos Estados Unidos. E, em mais de 40% dos casos, o familiar que está no país é seu guardião legal.
É o caso de João e sua mãe. Há alguns dias, eles se reencontraram — mas ainda estão longe de um final feliz, já que os pais de João ainda terão que lidar com o processo de deportação que pode expulsar toda a família dos Estados Unidos. Por ora, João poderá aprender o português, junto do inglês, ao lado de sua família brasileira.
*O nome da criança foi alterado para preservar sua identidade.
Enfrenta uma situação parecida e precisa de ajuda? As autoridades americanas disponibilizam uma linha nacional ou um e-mail para pais que acreditem que seus filhos estejam sob tutela dos Estados Unidos e queiram consultar: +1 (800) 203-7001 ou information@ORRNCC.com. O call center confirma se uma criança está sob os cuidados das autoridades americanas e envia informações em tempo real sobre a consulta da pessoa que ligou para o abrigo em que a criança está localizada. No entanto, não fornece qualquer informação sobre o paradeiro da criança e seu estado de saúde ao solicitante de informações até que haja comprovação do vínculo parental.
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