Na segunda semana de julho, centenas de manifestantes se reuniram em Brasília para demonstrar apoio às armas de fogo. Com o assunto em pauta, o Estado de Minas procurou especialistas #PRAENTENDER qual a relação entre armas, segurança pública e violência.
O protesto de 9 de julho de 2021 contou com a presença de políticos e teve como lema “Não é sobre armas, é sobre liberdade”. O evento foi organizado pela Associação Nacional Movimento Pró Armas (Ampa), ou simplesmente PROARMAS. O discurso levantou quatro pautas distintas:
- a primeira é a manutenção e ampliação dos direitos de acesso às armas;
- a segunda pede o respeito das instituições e apoio ao presidente;
- a terceira é o que o movimento chama de ‘cessamento das hostilidades’ com as pessoas que querem o acesso às armas;
- e, por último, que a constituição contemple o direito de legítima defesa e acesso aos meios de realizá-la.
“São quatro pautas distintas, todas propositivas, nenhuma ofensiva ou agressiva. É tudo muito pacífico e ordeiro. A função da manifestação é demonstrar que todo cidadão brasileiro que quer ter acesso à arma de fogo e que tem acesso à arma de fogo é, antes de tudo, um cumpridor da lei por excelência”, explica o fundador e atual presidente do PROARMAS, Marcos Pollon, que é também advogado especialista em legislação de controle de armas.
Os movimentos armamentistas no Brasil têm ganhado mais força desde que o presidente Jair Bolsonaro assumiu o poder, sempre simulando uma arma com as mãos. O discurso é de que os brasileiros precisam do direito de ter uma arma para proteger a própria vida e a de suas famílias.
Desde janeiro de 2020, o governo federal editou quase 30 atos normativos para facilitar o acesso às armas de fogo. Um dos decretos mais recentes, de fevereiro de 2021, aumenta de quatro para seis a quantidade de armas que um cidadão comum pode comprar. Profissionais da segurança pública podem ter até oito.
Também houve flexibilização para os CACs (colecionadores, atiradores e caçadores). Atiradores desportivos passaram a ter direito a até 60 armas e caçadores, a até 30, e só é exigida autorização do Exército quando essas quantidades forem superadas.
Apesar disso, os armamentistas ainda acham burocrático o controle de armas de fogo no Brasil.
“Acredito que qualquer cidadão que qualquer cidadão que não cometeu crime deveria ter acesso à arma de fogo que ele pretende adquirir, seja para defesa ou para praticar o esporte, não haveria necessidade de ter esses dois sistemas distintos”, afirma Marcos Pollon.
O presidente do PROARMAS acredita que adquirir uma arma ilícita é mais fácil do que uma arma regulamentada no país. “A gente escolhe cumprir a lei, uma vez que é muito mais fácil ter acesso a uma arma pelo mercado negro, uma arma ilícita, do que uma arma regulamentada. O Brasil é um dos países que têm legislação de controle de armas mais rigorosos do mundo.”
Armas e democracia
O tema, que é bastante complexo, também conta com especialistas que argumentam que o acesso civil às armas de fogo, além de aumentar as mortes, pode ser um risco à democracia.
É o caso do sociólogo Antônio Rangel Bandeira, que colaborou com a política de controle de armas dos governos dos Estados Unidos e de mais 14 países da América Latina e África. No Brasil, colaborou na elaboração e aprovação do Estatuto do Desarmamento, em 2003.
“Arma é um instrumento muito ambíguo. Pode ser um instrumento benéfico no sentido de proteção usado pela polícia por exemplo, em caso de defesa do país, em casos extremos de defesa contra a violência e pode ser muito maléfico no sentido de que na mão de bandido, de criança, de autoridades corruptas, de cidadãos que acham que autodefesa é uma atitude muito fácil e a arma acaba vitimando algum parente”, disse.
“De qualquer maneira, a tendência mundial, eu digo isso como quem trabalhou para a ONU e viajou muito, é que se use cada vez menos arma de fogo, inclusive pela polícia”, afirma Rangel.
Em seu livro Armas pra quê?, publicado pela Editora Leya, Rangel cita dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) que relacionam armas à segurança. Segundo o levantamento, nos 14 anos superiores ao Estatuto do Desarmamento, de 2003 a 2017, o índice de mortes por armas de fogo subiu em média 0,85% ao ano, enquanto nos 14 anos anteriores à lei, esse crescimento era de 5,44%, ou seja, mais de seis vezes superior.
“Há 22 anos que me dedico ao tema de controle de arma de fogo. Reúno nesse livro uma grande experiência do que deu certo e do que não deu certo”, comenta Rangel. “Os armamentistas, principalmente aqueles financiados pela indústria de arma americana, que é a mais poderosa do mundo, dizem que ‘mais armas, menos crimes’ e 98% das pesquisas internacionais e 100% das pesquisas nacionais indicam que é o oposto: menos armas, menos crime, menos violência”, afirma.
Armas e violência
O Instituto Sou da Paz associa as armas de fogo diretamente ao aumento da violência e persistência da desigualdade social no país.
“De forma muito genérica, armas só vão trazer alguma segurança se estiverem nas mãos de agentes de segurança pública”, afirma Natalia Pollachi, gerente de projetos na ONG. “Existe uma uma falsa sensação de segurança da presença de arma de fogo. Muitas pessoas querem ter arma até muito bem intencionadas, achando que assim vão conseguir se defender de um eventual crime, mas o que agente vê na prática é que essas tentativas de reação são bastante desastrosas.”
“A desigualdade é um dos principais fatores que nos leva a ter maiores índices de criminalidade. Nenhuma política de segurança por si vai resolver esse problema da violência, é preciso investimento em reduzir essa desigualdade, políticas de educação, de emprego, de combate ao racismo, de inclusão social. Agora, o que a gente acredita, é que mais armas e circulação vão trazer mais violência. Isso de fato não é uma crença ideológica, isso é apoiado em estudos científicos”, afirma.
Estatuto do Desarmamento e o referendo
Dois anos depois do Estatuto do Desarmamento, em outubro de 2005, os brasileiros foram às urnas para decidir se o comércio de armas de fogo e munição para a população em geral deveria ser proibido. É o chamado “referendo”.
Na época, esse referendo dividiu o país diante de uma ampla mobilização de personalidades para que a venda fosse autorizada apenas a profissionais da segurança pública e de outras entidades previstas em lei.
O principal argumento de quem era contra a comercialização irrestrita dos artefatos foi que isso poderia aumentar o número de mortes por tiro. Apesar dos apelos, mais de 59 milhões dos eleitores votaram para que o comércio não fosse restringido.
Para o Instituto Sou da Paz, houve uma falha de interpretação sobre a pergunta do referendo que dizia: "O comércio de armas de fogo e munição deve ser proibido no Brasil?". O eleitor teve duas opções: sim ou não. O "não" venceu com 63,94% de votos válidos.
“Quando as pessoas falam que o referendo de 2005 não foi respeitado é porque as pessoas não entenderam qual era a pergunta do referendo. Não era uma pergunta sobre ‘você quer que o comércio de armas seja flexibilizado ou regulado? A pergunta era: ‘você acha que o comércio de armas deve ser completamente proibido?’, ou seja, inexistente, ou que ele deveria existir sob requisitos previstos em lei.
E a decisão popular foi que o comércio de armas deveria ser mantido sob requisitos previstos em lei, a lei aprovada em 2003, o Estatuto do Desarmamento. Então, existe uma grande confusão sobre o resultado do referendo, a população não rejeitou o Estatuto do Desarmamento, a população escolheu pela manutenção dos critérios do Estatuto do Desarmamento.”
E a decisão popular foi que o comércio de armas deveria ser mantido sob requisitos previstos em lei, a lei aprovada em 2003, o Estatuto do Desarmamento. Então, existe uma grande confusão sobre o resultado do referendo, a população não rejeitou o Estatuto do Desarmamento, a população escolheu pela manutenção dos critérios do Estatuto do Desarmamento.”
O PROARMAS critica o Estatuto do Desarmamento com base numa declaração do ex-ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, que comandava a pasta na época do referendo. O ex-ministro se manifestava contra o comércio de armas devido aos riscos de homicídios acidentais.
“Se não foi feito para desarmar bandido (o Estatuto do Desarmamento), qual é a função do desarmamento? Naquela ocasião ele fala (Thomaz Bastos) que é para combater o homicídio eventual. Esses homicídios correspondem a menos 5% dos homicídios praticados no Brasil, num território que teve mais de 64 mil homicídios por ano, então não faz o menor sentido”, critica.
“Deixar a população à mercê da violência. Isso é muito grave, isso é muito perigoso, isso é muito cruel com a população brasileira que tem sim o direito à legítima defesa, esse direito deve ser respeitado”, acrescenta.
Segurança pública
Na busca de tentar explicar se armas de fogo usadas por civis aumentam ou não a segurança da sociedade, convidamos também o secretário de Estado de Justiça e Segurança Pública de Minas Gerais, Rogério Greco, que fala sobre armas para civis do ponto de vista da segurança pública.
O chefe da pasta foi procurador de Justiça por três décadas e publicou diversas obras sobre a área do direito penal. No cargo, Rogério Greco é responsável por dialogar com as polícias Militar, Civil e Penal e com o Corpo de Bombeiros. Além disso, ele também chefia a gestão do sistema socioeducativo, do sistema prisional mineiro e da política estadual de prevenção à criminalidade.
Em entrevista, Rogério defende “a possiblidade de exercer o direito de defesa” e é categórico ao dizer que “sem armas não há segurança”. Pela sua experiência, o secretário conta que o maior desafio do sistema são as armas ilegais.
“A gente criou o mito com esse pavor que a gente tem com as armas”, diz Greco. Ele conta que durante a experiência como promotor de júri no Ministério Público viu que a maioria dos crimes relacionados às armas de fogo foi feita com armamento ilegal.
“Quando a gente criou o mito da arma de fogo, a gente colocou todas as armas no mesmo balaio”, lembra. “O que a gente quer é essa possibilidade de exercer a nossa defesa”, afirmou.
Forças policiais
Para entender quais os reflexos da liberação de armas para as forças policiais, a reportagem também tentou falar com a Polícia Militar de Minas Gerais, que preferiu não se posicionar sobre o assunto afirmando que falta “um estudo mais aprofundado pela instituição.”
Mas a PM esclareceu, em nota, “que a regulamentação dos critérios sobre o armamento legalizado, bem como as etapas que deverão ser cumpridas para a aquisição e quem poderá adquiri-lo, é que implicará diretamente na maneira como esse armamento será devidamente utilizado em caso de liberação.”
Mais registros de armas
Dados da Polícia Federal mostram que em 2020 foram 177.782 novos registros de armas no Brasil. Os números de novos registros triplicaram de 2018 para 2020. Antes de Bolsonaro assumir a presidência, em janeiro de 2019, o aumento anual de novos registros não ultrapassava 40%. De 2018 (foram 51.027 novos registros) para 2019, houve crescimento de 84%.
A alta foi ainda mais crescente em 2020, quando o número de novos registros de armas de fogo no país aumentou 90% em comparação com o ano anterior, e foi o maior número da série histórica do sistema da Polícia Federal. Esses números registram apenas as armas de fogo que ficam nas mãos de civis.
Números no Brasil e nos Estados Unidos
As mortes por armas de fogo – legalizadas ou não – têm aumentado. De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 78% das mortes violentas intencionais de 2020 foram com emprego de arma de fogo, um aumento de 4,5% em relação ao ano anterior.
Nos Estados Unidos o número também assusta pesquisadores. A Revista Times publicou, em dezembro do ano passado, que a violência armada e os crimes com armas de fogo aumentaram drasticamente por lá. Foram mais de 19 mil pessoas mortas em tiroteios e incidentes relacionados com armas de fogo em 2020.
Coincidentemente ou não, 2020 também foi um ano recorde quando se trata de americanos comprando armas de fogo, segundo dados da National Shooting Sports Foundation, publicados pela CBS News.
As estatísticas ainda precisam ser analisadas por especialistas, mas americanos dizem que o aumento das vendas de artefatos pode estar ligado às preocupações com proteção pessoal e defesa doméstica durante o isolamento social causado pela pandemia de COVID-19.