Uma raridade. De 1795, o cruzeiro de São Francisco é um dos poucos remanescentes de seu tipo no País e um dos três únicos trabalhos documentados ainda existentes do mestre pedreiro Joaquim Pinto de Oliveira, o Tebas, construtor negro por trás de icônicas obras paulistas do século 18. Após décadas sem os cuidados necessários, a obra começou a ser restaurada no centro histórico de Itu, interior de São Paulo, trabalho que deve se estender ao menos até o fim do ano.
Trata-se de uma cruz de rocha talhada com cerca de 9 metros. Está encravada na Praça Dom Pedro I, antigo Largo de São Francisco, que outrora integrava um conjunto arquitetônico franciscano, do qual é o único testemunho ainda de pé. Com os séculos, o monumento virou ponto de encontro social e de celebrações da memória e da cultura da população negra.
A cruz é tombada em nível estadual desde 2003, junto com outros bens do centro histórico ituano. Também é única por sua composição: arenito, oriundo da região de Sorocaba, e varvito, de Itu, rocha sedimentar formada a partir da glaciação de rios há milhões de anos.
O bem teve a autoria de Tebas (também grafado como Thebas) identificada há pouco mais de cinco anos, pelo então pesquisador do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e historiador Carlos Gutierrez Cerqueira. Ele pesquisava em um livro de registros franciscano, quando viu dados da contratação dos serviços do mestre de obras.
A construção durou cerca de um mês e contou com os trabalhos de João, homem escravizado que trabalhava para Tebas, ele próprio um ex-escravo que comprou a liberdade após ganhar uma ação judicial.
O restauro busca recuperar rachaduras, lascas e outros danos de séculos de exposição a chuvas e sol e, também, de contaminação biológica, com formigas e fungos. A manutenção nas décadas foi considerada ineficiente. "Estava em situação muito ruim. Não se sabe como não caiu", diz a restauradora Maria Luiza Dutra, que elaborou o projeto de restauro.
Para estabilizar a estrutura, foi necessário colocar uma estrutura com andaime. Uma análise prévia ao início dos trabalhos já havia constatado obturações na estrutura, preenchidas com pedras e até resina. "É muito delicado, frágil demais", acrescenta a arquiteta. Cogita-se manter algumas características do sítio arqueológico, além de expor parte dos artefatos achados em um museu no entorno. É o que aponta Emerson Castilho, diretor municipal de Patrimônio Histórico de Itu.
Segundo ele, os franciscanos foram trazidos para a região por ricos produtores de açúcar, a fim também de introduzir costumes e culturas da Europa. A ideia é construir um pavilhão para expor peças arqueológicas encontradas na praça, embora a cessão do acervo dependa de tratativas na esfera federal.
Uma equipe de arqueologia fez prospecções no entorno do cruzeiro em janeiro, nas quais foram achados 193 fragmentos cerâmicos, vidros, uma medalha franciscana e itens de períodos distintos. O arqueólogo Paulo Zanettini, que coordenou o trabalho, diz que outros artefatos encontrados na área já apontavam potencial arqueológico, como uma urna e uma cerâmica indígenas íntegras.
"O desenho da praça mudou, possivelmente incorporou quintais de casas já desaparecidas", ressalta o arqueólogo. "Debaixo do chão que a gente pisa, há uma enormidade de informações que se perdem se não há um estudo técnico adequado."
Tebas tem passado por uma revalorização, como aponta Abílio Ferreira, organizador do livro Tebas - Um negro arquiteto na São Paulo escravocrata. Um dos reconhecimentos foi o título de arquiteto, dado pelo Sindicato dos Arquitetos de São Paulo há três anos. Ferreira também destaca que Tebas foi famoso quando vivo, mas que essa memória se perdeu. "As pessoas ficam espantadas em como uma pessoa que fez intervenções tão decisivas em São Paulo ficou desconhecida por tanto tempo", comenta.
Em uma São Paulo em grande parte de taipa de pilão (técnica construtiva com barro e outros materiais), a cantaria (entalhe de pedra) era um luxo, pago praticamente só por ordens religiosas (mesmo assim, apenas para a fachadas dos imóveis). O domínio dessa prática era raro na região, sendo Tebas um dos maiores expoentes.
Hoje, restam, contudo, apenas três obras que tem comprovada participação do construtor: as fachadas das Igrejas da Ordem Terceira do Carmo, na Avenida Rangel Pestana, e das Chagas do Seráphico Pai São Francisco, no Largo do Francisco, ambas na capital, e o cruzeiro de Itu. Ele também participou das obras das antigas Catedral da Sé e Igreja do Mosteiro de São Bento, além do chafariz do Largo da Misericórdia, que não existem mais, dentre outras.
O historiador Luis Gustavo Reis, que pesquisou o tema, acredita que há outros trabalhos ainda desconhecidos de Tebas. Como exemplo, cita a Calçada de Lorena, primeiro caminho pavimentado a ligar São Paulo e Santos, cujas técnicas de execução indicam possível participação do mestre pedreiro.
Reis relata que Tebas nasceu em Santos, em 1733, tendo apreendido o ofício com o mestre de obras Bento de Oliveira Lima. Embora tenha sido escravizado por grande parte da vida, vivia com mais autonomia do que o padrão da sua condição na época, vivendo em uma casa sozinho com a esposa. tendo bens e negociando contratos. Por volta de 1778, comprou a própria liberdade após ganhar o direito de ser indenizado pela viúva de Lima na Justiça.
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