Marcelo* foi abordado na rua por policiais em um carro descaracterizado no dia 6 de agosto de 2020, no Rio de Janeiro.
"Não era o carro da Civil, era um carro branco... Me abordaram na rua, com arma na minha cara, perguntando meu nome e já me algemando."
Completamente desnorteado, ele chegou a questionar os policiais sobre o que estava acontecendo, do que estava sendo acusado, mas ouviu dos agentes que alguém lhe explicaria na delegacia.
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Marcelo só foi informado de que estava sendo acusado de roubo dias depois da prisão, quando já havia sido transferido da carceragem da 76ª DP para o presídio José Frederico Marques, em Benfica, na Zona Norte do Rio
Lá, sua advogada lhe disse que a vítima de um assalto a mão armada ocorrido em julho o teria reconhecido em uma fotografia no álbum de suspeitos da delegacia. Foi um choque.
Ele não tinha passagem pela polícia e não fazia ideia de como uma imagem sua tinha parar em um catálogo de suspeitos.
A foto, Marcelo descobriria, fora retirada de sua conta no Facebook. Datava de 2017, uma época em que usava cabelo curto, "raspado na zero ou na um" — um estilo bem diferente do que exibia em 2020, com cabelos compridos e com tranças.
Como uma imagem de rede social de um jovem sem nenhuma passagem pela polícia foi parar em um álbum de suspeitos?
A polícia não lhe respondeu. Nem à OAB (Organização dos Advogados do Brasil): a Comissão de Direitos Humanos e Assistência Judiciária da OAB-RJ enviou um ofício à 76ª DP — e a outras quatro delegacias onde houve casos semelhantes — e recebeu de volta respostas genéricas, diz a advogada Sônia Ferreira Soares, membro da comissão.
O argumento foi que, por questões de confidencialidade, a delegacia não poderia detalhar o método de elaboração dos álbuns.
À BBC News Brasil, a Secretaria de Polícia Civil do Rio de Janeiro afirmou que as fotos do jovem foram extraídas das suas próprias redes sociais, "consideradas fontes abertas, procedimento comum utilizado pela Polícia Civil para realizar levantamento de identificação e qualificação de autores de crimes".
"O reconhecimento fotográfico ocorreu na gestão passada. Para aperfeiçoar esses procedimentos, a atual gestão da Polícia Civil recomendou que os delegados não usem apenas o reconhecimento fotográfico como única prova em inquéritos policiais para pedir a prisão de suspeitos", diz a nota.
Procurado, o Ministério Público do Rio de Janeiro não enviou posicionamento.
Os erros em cadeia que levam inocentes à prisão
O que aconteceu com Marcelo não foi um caso isolado e é produto de uma série de problemas no sistema criminal do Rio de Janeiro e de outros Estados brasileiros.
Primeiro, há a questão dos álbuns de suspeitos. Não existe uma regra que normatize como as fotos podem e devem ser obtidas, o que abre espaço para abusos como no caso do jovem, que claramente viola a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD).
Outro problema central é o uso do reconhecimento fotográfico como único elemento de prova.
"É preciso olhar esse apontamento da autoria com muito cuidado, tem que ter outras provas", diz Rafaela Garcez, defensora pública em Nilópolis, cidade que, assim como Niterói, também fica na região metropolitana do Rio.
No dia em que conversou com a reportagem da BBC News Brasil, todas as audiências a que a defensora compareceria eram de prisões com base unicamente em reconhecimentos fotográficos. Esse é o cotidiano dos defensores públicos do Estado do Rio, diz ela.
"Em nenhum dos processos houve a tentativa de oitiva da pessoa que foi apontada como a criminosa. Nenhum tipo de ordem de busca e apreensão para tentar encontrar os pertences das vítimas, a arma do crime", ela ressalta. "Vamos ver o local , se tem câmeras, se há mais alguma testemunha, a placa do veículo... nada disso foi feito."
Um dos casos em que ela trabalhou chegou ao STJ no último mês de dezembro, quando Tiago Vianna Gomes, jovem negro de 28 anos, foi absolvido de condenação em primeira e segunda instâncias dadas com base unicamente no reconhecimento fotográfico.
As investigações precárias, para Garcez, que é defensora há 15 anos, têm também relação com uma gratificação paga nas delegacias do Rio de Janeiro pelo número de inquéritos encerrados.
"Muitas delegacias conseguiram índices de eficiência provavelmente muito bons porque encerraram inquéritos com indiciamentos, que, na prática, não tinham base em investigação nenhuma, só numa exibição de uma foto num álbum de suspeitos, o que é muito pouco, e é muito grave."
As falhas acontecem em cadeia e não param na polícia, já que o Ministério Público é quem faz as denúncias com base nos inquéritos e os juízes determinam as prisões, apesar de já haver precedentes no STJ (Supremo Tribunal de Justiça) rejeitando a prisão preventiva e condenação com base no reconhecimento fotográfico como único elemento de prova.
Viés racial e a psicologia do testemunho
A maioria das vítimas são jovens negros como Marcelo.
A Defensoria Pública do Rio chegou a fazer um levantamento com os casos recebidos nos 8 meses entre 1º de junho de 2019 até 10 de março de 2020 com perfil semelhante: acusados com base apenas em reconhecimentos fotográficos que foram absolvidos.
Cerca de 80% dos 58 acusados eram negros.
"Isso não é mera coincidência. O que existe por trás disso é o racismo estrutural", diz Sônia Ferreira, da Comissão de Direitos Humanos da OAB.
As vítimas não necessariamente reconhecem os suspeitos errados de má fé. O viés racial interfere de um lado: "Nossa capacidade de reconhecimento de rostos é muito mais dirigida a quem já conhecemos, com quem temos familiaridade", pondera Garcez.
De outro, há a própria falibilidade da memória humana. A área da psicologia do testemunho tem evidências claras de que falhas que vêm do funcionamento normal da memória podem levar a falsos reconhecimentos. A vítima pode ficar sugestionada, por exemplo, por algo que outra testemunha disse ou pela própria conduta dos agentes e criar falsas memórias que lhe parecem verdadeiras.
"A pessoa já está vulnerável por ter sido vítima de um crime, chega na delegacia e alguém apresenta um catálogo dizendo: 'Oh, esse é o pessoal que comete crime por aqui, são os bandidos da região. Vê se você reconhece algum'", exemplifica a defensora.
O relatório da defensoria traz ainda outros dois dados alarmantes. Metade dos réus nunca tinha tido passagem pela polícia — e, no entanto, suas fotografias estavam entre álbuns de suspeitos. O tempo médio de prisão, por sua vez, foi de 277 dias, pouco mais de 9 meses.
'Perdi os primeiro passos do meu filho'
Marcelo passou por três unidades prisionais. Do presídio José Frederico Marques, ele foi transferido para o Tiago Teles, em São Gonçalo, e, depois de absolvido, teve ainda de passar um dia no presídio Evaristo de Moraes, conhecido como Galpão.
Viu de dentro a realidade do sistema prisional: dormiu no chão, sem lençol, ficou doente, com todos os sintomas da Covid-19, perdeu os chinelos porque eles não estavam de acordo com as "cores do presídio". Não conseguiu ir ao banheiro nos primeiros cinco dias.
"Lá é um lugar horrível, tratam a gente igual bicho, xingam mesmo. Na ala em que eu estava uma vez jogaram spray de pimenta . Então, tudo isso foi mexendo com o meu psicológico, o medo…"
"Tinha hora que eu tinha esperança, tinha hora que eu tinha fé, tinha horas que eu não tinha, que eu achava que ia ser mais um, como é que eu vou dizer... Mais um, né?"
Do lado de fora, ele perdeu os primeiros passos do filho, que tinha pouco mais de um ano, perdeu a comemoração do Dia dos Pais, o aniversário do pai e da esposa.
Para ocupar a cabeça, conversava muito com os outros presos. Foi assim que descobriu que alguns deles estavam há meses esperando pelas audiências que foram suspensas por conta da pandemia de Covid-19.
Marcelo viu pela primeira vez a pessoa que erroneamente o reconheceu no álbum de suspeitos no dia 28 de setembro. Na audiência na 1ª Vara Criminal de Niterói, ela disse que o jovem não tinha semelhança com o assaltante.
"Nessa hora eu respirei muito fundo. Quando a juíza me deu minha inocência eu só queria ir pra casa."
Por questões burocráticas, ele ainda teria que passar uma noite no Galpão. A liberdade veio no dia de seu aniversário de 25 anos, em 29 de setembro de 2020.
Ao sair, descobriu que estava sendo acusado de roubo em um segundo processo, também com reconhecimento fotográfico como único elemento de prova. Ele conseguiu o direito de responder em liberdade e soube recentemente que a vítima voltou à delegacia e retificou que Marcelo não teria participado do crime. Ele segue esperando o julgamento.
No caso da defensora Rafaela Garcez que foi parar no STJ, o jovem preso injustamente, Tiago Vianna Gomes, foi acusado em 9 processos. Conseguiu absolvição em 8 e luta para provar sua inocência no último.
Um ano depois de ter sido preso, Marcelo diz que não quer esquecer o que aconteceu. Ele e a esposa estão em contato com familiares de outras vítimas de falso reconhecimento e tentam ajudá-las com o que aprenderam da experiência.
Na noite que ele passou no Galpão, dois rapazes com quem compartilhou a cela haviam sido absolvidos nas mesmas circunstâncias. Um deles tinha dado a "sorte" de que alguém o havia fotografado no chá de bebê do sobrinho no momento do crime.
"Eu achava que o sistema era falho por manter pessoas injustamente presas. Mas o que eu vi não foi que o sistema é falho, eu vi que o sistema é injusto mesmo."
*O nome da vítima foi alterado para preservar sua identidade e segurança.
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