"Deus dirige o destino dos povos".
Essa expressão, criada por Plínio Salgado (1895-1975), abriu o Manifesto de Outubro, em 7 de outubro de 1932.
O documento, redigido pelo próprio jornalista e escritor, definia as diretrizes ideológicas do integralismo, versão brasileira do fascismo italiano e de seus similares europeus, e é considerado pelos historiadores Leandro Pereira Gonçalves e Odilon Caldeira Neto, autores de O Fascismo em Camisas Verdes - Do Integralismo ao Neointegralismo (2020), a "certidão de nascimento" do movimento.
Quase 90 anos depois, a expressão foi usada, no dia 8 de junho de 2021, pelo advogado e candidato não eleito a deputado federal em 2018 Paulo Fernando para abrir seu discurso de filiação ao Partido Trabalhista Brasileiro (PTB).
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"Eles buscam construir alianças para articulações mais amplas. O discurso contrário à democracia liberal é, muitas vezes, um grande obstáculo para as pautas integralistas. Mas essa relação existe. E, ultimamente, tem crescido".
Os 'herdeiros' de Plínio Salgado
Os mais novos filiados do PTB são todos integrantes da Frente Integralista Brasileira (FIB), o mais ativo e organizado dos três grupos neointegralistas surgidos na década de 2000, cada um com uma interpretação diferente da ideologia do movimento.
Os outros dois são a Ação Integralista Revolucionária (AIR), de intensa atuação virtual, e o Movimento Integralista e Linearista Brasileiro (MIL-B), de forte conotação antissemita.
Segundo estimativas, o número de militantes da FIB, o maior dos três grupos, não passa de 200 adeptos, em sua maioria homens.
"É natural que exista, entre os neointegralistas, um movimento de disputa em torno de uma certa legitimidade para suas atividades. Eles se apresentam como herdeiros legítimos de um movimento que, no século 20, agitou parcelas significativas da sociedade", observa Odilon.
"Eu não diria que eles são herdeiros de Plínio Salgado, mas herdeiros de toda a complexidade que permeia o integralismo, inclusive de lideranças como Miguel Reale (1910-2006) e Gustavo Barroso (1888-1959). É um movimento voltado para o futuro, mas com os olhos fixos no passado."
Professores do Departamento de História da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Leandro e Odilon são velhos estudiosos do integralismo brasileiro. Leandro é autor de Plínio Salgado: Um Católico Integralista Entre Portugal e o Brasil (2018) e Odilon, de Sob o Signo do Sigma: Integralismo, Neointegralismo e o Antissemitismo (2014).
"O universo da extrema direita brasileira foi objeto de nossas monografias, dissertações, teses e artigos. Mas, nos últimos anos, nossos objetos de pesquisa se tornaram mais ativos, visíveis e radicalizados", observa Leandro Pereira Gonçalves, doutor em História pela Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo.
Um dos exemplos recentes da face mais radical do neointegralismo é a invasão, no dia 30 de novembro de 2018, da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) por militantes do grupo Comando de Insurgência Popular Nacionalista (CIPN) para roubar cartazes e bandeiras antifascistas.
Dias depois, em um vídeo postado no YouTube, onze homens encapuzados e vestidos de preto, com uma pequena bandeira do Brasil no lado esquerdo do peito, chamaram o ato de "ação revolucionária" e, em seguida, queimaram as faixas antifascistas.
Era uma vez em Roma
A ideia de escrever O Fascismo em Camisas Verdes surgiu em dia 24 de dezembro de 2019, quando outro grupo arremessou coquetéis molotov na fachada da sede da produtora Porta dos Fundos em Botafogo, na Zona Sul do Rio.
Algumas horas depois, outro vídeo, com três homens encapuzados e vestindo camisas verdes com o Sigma, foi divulgado nas redes sociais.
Nele, o grupo assumia a autoria do ataque, que teria sido motivado pelo especial natalino A Primeira Tentação de Cristo, lançado dias antes na Netflix, que retratava Jesus como homossexual.
"Para nós, esse ataque parecia ser algo de fácil entendimento, mas percebemos que existia uma demanda de conhecimento crítico e aprofundado sobre o tema na sociedade, que desejava conhecer a história do fascismo na História do Brasil", explica Odilon.
Um dos responsáveis pelo ataque à produtora Porta dos Fundos, Eduardo Fauzi, foi flagrado por câmeras de segurança. No dia 29 de dezembro de 2019, ele fugiu para a Rússia, mas foi capturado por agentes da Interpol no dia 4 de setembro de 2020.
As camisas verdes — versão brasileira dos camisas-negras italianos — e o símbolo do sigma — letra grega (Σ) usada na matemática como notação para somatório —, ostentados no vídeo, são dois dos muitos símbolos do integralismo, movimento criado por Plínio Salgado em 1932, em parceria com Miguel Reale e Gustavo Barroso.
Dois anos antes, Plínio Salgado fizera parte da comitiva brasileira que, no dia 14 de junho de 1930, conheceu Benito Mussolini (1883-1945), o então primeiro-ministro italiano, em visita ao Palácio Venezia, em Roma.
O encontro não durou mais do que 15 minutos, mas foi tempo suficiente para inspirar Plínio Salgado a adaptar o fascismo italiano à realidade brasileira e criar o maior movimento de extrema direita da história do país.
"Contando eu a Mussolini o que tenho feito, ele achou admirável o meu processo, dada a situação diferente de nosso país. Também como eu, ele pensa que, antes da organização de um partido, é necessário um movimento de ideias", relatou Plínio Salgado em carta de 1936.
Suas ideias, nacionalistas e conservadoras, ganharam vida em 6 de maio de 1932, quando sugeriu a criação de um novo grupo, a Ação Integralista Brasileira (AIB). Passados seis meses, a AIB foi oficialmente lançada no dia 7 de outubro de 1932. Plínio Salgado foi escolhido o chefe nacional do movimento.
"Uma organização pautada no cristianismo e com forte discurso anticomunista, antiliberal e, em alguns casos, antissemita", resume Leandro.
Na fase áurea do integralismo, Plínio Salgado gostava de repetir, cheio de si, que a AIB tinha "um milhão de integrantes". Em 1946, porém, confidenciou ao genro, Loureiro Júnior, que o total de filiados era, na verdade, bem mais modesto.
"Não é vergonha nenhuma sermos 200 mil e, sabendo que não passamos disso, não incorreremos em erros perniciosos", admitiu em carta.
Último lugar nas urnas
A Ação Integralista Brasileira (AIB) teve vida curta: fundada em 1932, foi extinta apenas cinco anos depois, em 1937, pelo Estado Novo.
O nome de Plínio Salgado chegou a ser indicado pela maioria dos filiados como candidato à Presidência da República em 1938. Mas, em troca da promessa de ocupar o Ministério da Educação, o líder integralista desistiu de disputar a eleição para apoiar a candidatura de Getúlio Vargas. Não deu certo. Quando assumiu, em 1937, Vargas extinguiu todos os partidos políticos. A AIB inclusive.
Indignados, os integralistas organizaram dois levantes: o primeiro em 11 de março e o segundo em 11 de maio de 1938. Ambos fracassaram.
Alguns revoltosos foram sumariamente fuzilados. Acusado de conspiração, Plínio Salgado foi preso — ele e outros 1,5 mil membros do partido — e, em 22 de junho de 1939, exilado em Portugal, onde permaneceu até 1946.
"O integralismo não chegou ao fim com a extinção da AIB", pondera Leandro. "Suas ações políticas continuaram no período da ilegalidade".
Durante seu autoexílio, Plínio Salgado procurou se "reinventar". Aboliu o discurso autoritário e adotou um tom religioso. Na volta ao Brasil, fundou uma nova sigla, o Partido da Representação Popular (PRP).
"Um fascismo democrático", define Leandro.
Em 1955, disputou a Presidência do Brasil, mas só obteve 714,3 mil votos (8% do total). Conclusão: terminou em último, atrás de Juscelino Kubitschek (35%), Juarez Távora (30%) e Adhemar de Barros (25%).
Com o fim do PRP em 1965, Plínio Salgado migrou para a Aliança Renovadora Nacional (Arena), o partido do governo. Durante a ditadura militar, criou uma disciplina escolar conhecida como Educação Moral e Cívica.
Plínio Salgado morreu em 8 de dezembro de 1975, aos 80 anos, vítima de infarto.
Segundo a doutrina que ele próprio ajudou a criar, não morreu. Foi transferido para a milícia do além, onde passaria a ser comandado por Deus.
Antes de enveredar pela política, Plínio Salgado tentou a literatura. Seu romance de estreia — O Estrangeiro (1926) — foi saudado pelo romancista baiano Jorge Amado (1912-2001) como "a mais imbecil literatura que se possa imaginar". Escreveu mais três romances: O Esperado (1931), O Cavaleiro de Itararé (1933) e A Voz do Oeste (1934).
Sai Papai Noel, entra Vovô Índio
Em O Fascismo em Camisas Verdes, Leandro e Odilon revelam algumas curiosidades sobre o integralismo. Algumas dizem respeito ao uniforme, composto por camisas verdes de mangas compridas e colarinhos abotoados.
Todo filiado deveria usar matéria-prima nacional, ou seja, as camisas, sempre verdes, tinham de ser de brim ou algodão. Calças brancas ou pretas, gravatas pretas e lisas, um gorro verde de duas pontas e uma fivela dourada completavam a indumentária.
As mulheres, chamadas de blusas-verdes, usavam camisas verdes e saias pretas ou brancas.
Se algum integralista fosse flagrado consumindo bebida alcoólica, dançando ou jogando, seria punido com uma falta disciplinar grave. Se fosse preso, deveria pedir licença à polícia para, no ato da prisão, retirar a camisa — a não ser que a prisão tivesse caráter político; nesse caso, o integralista poderia exibir o figurino com orgulho patriótico.
"Em hipótese alguma, a camisa verde seria uma fantasia de Carnaval. Era proibição máxima", explicam os autores.
E, por falar em blusas-verdes, sim, as mulheres eram aceitas na organização. Como a família era a "cellula mater" da nação brasileira, o papel delas era estratégico: gerar futuros integralistas para o partido.
Enquanto os maridos participavam de reuniões, desfiles e marchas, suas esposas ficavam em casa, cuidando dos afazeres domésticos e zelando pela educação dos filhos, os "plinianos".
Nas horas de lazer, os homens eram estimulados a praticar esportes, montar times de futebol e participar de competições esportivas. Alguns núcleos, como o de Porto Alegre (RS), chegaram a ter suas próprias equipes, o Bolão Futurista.
Já as mulheres eram orientadas a fazer cursos, como datilografia, puericultura e boas maneiras.
Os camisas-verdes também tinham seus próprios rituais de batismo, casamento e funeral. Os membros do clero católico, o principal braço religioso do movimento, ganharam o apelido de "batinas-verdes". O mais famoso deles foi o então sacerdote e futuro arcebispo emérito de Olinda e Recife Dom Hélder Câmara (1909-1999). No batizado integralista, a criança, depois de receber o sacramento, era envolta na bandeira da AIB. Em seguida, pais e padrinhos, todos devidamente uniformizados, gritavam: "Ao futuro pliniano, o seu primeiro Anauê!".
Toda sede do movimento deveria ser decorada com uma foto de Plínio Salgado, um relógio de parede — com a frase "Nossa hora chegará!" — e um cartaz com os dizeres: "O integralista é o soldado de Deus e da pátria, homem novo do Brasil que vai construir uma grande nação".
Ao longo dos anos, foram inauguradas escolas integralistas, com o objetivo de alfabetizar os futuros eleitores, além de criarem os mais variados produtos com o símbolo do Σ — de pasta de dente a maço de cigarro — e lançarem veículos de propaganda, como o jornal A Ofensiva, e as revistas Anauê, Panorama e Brasil Feminino.
Para festejar o Natal, uma versão 100% brasileira do Bom Velhinho: o Vovô Índio, "um senhorzinho amigo das árvores" e "vestido com penas de passarinhos". "O Papai Noel era negado pelos integralistas porque simbolizava o capitalismo liberal", explica Leandro.
'Deus, pátria e família'
O chefe supremo do partido pensou em tudo: lema ("Deus, pátria e família"), saudação ("Anauê!", com o braço direito levantado para o céu, um gesto que remete ao cumprimento nazista) e até hino ("Avante").
Escrito pelo próprio Plínio Salgado, o refrão anunciava: "Avante! Avante! / Pelo Brasil, toca a marchar / Avante! Avante! / Nosso Brasil vai despertar".
Uma curiosidade: os camisas-verdes aboliram a segunda parte do Hino Nacional por não aceitarem o trecho da letra que diz: "Deitado eternamente em berço esplêndido!".
No Manifesto de Outubro (1932), o fundador do integralismo explicou o significado do lema: Deus é "quem dirige o destino dos povos", pátria é o "nosso lar" e família, "o início e o fim de tudo".
Já a saudação "Anauê!", obrigatória, pode ser traduzida, em tupi, como "Você é meu irmão!". Para os indígenas, os autênticos representantes da cultura nacional, era um grito de guerra. Para os integralistas, uma manifestação de alegria.
"Era pronunciada com voz natural, quando individual, e com voz clara e decidida, quando coletiva", explica Leandro.
Os integralistas tinham direito a um Anauê; os dirigentes, a dois; Plínio Salgado, a três e Deus, a quatro. Em público, só o dirigente supremo — no caso, o próprio Plínio Salgado - tinha autorização para saudar Deus.
Em 21 de novembro de 2019, o partido Aliança pelo Brasil, criado para abrigar o presidente Jair Bolsonaro e seus apoiadores, pegou o lema integralista emprestado. Até o momento, a legenda só conseguiu coletar — segundo o site do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) — 119,3 mil (24%) das 491,9 mil assinaturas necessárias para a criação de um partido.
"O lema 'Deus, pátria e família' é mais um esforço bolsonarista na leitura sobre valores, inspirações e imaginários do nacionalismo de direita brasileiro. É a tentativa de sintetizar a diversidade da história da extrema direita em torno de um eixo estruturante. Acontece que o bolsonarismo, seja pelo uso de estratégias diversificadas, seja por causa de objetivos distintos, não pode ser considerado um bloco monolítico", afirma Odilon.
Entre revisitar artigos, teses e dissertações já escritos sobre o tema e consultar novas fontes para o livro, os autores levaram seis meses para concluir O Fascismo em Camisas Verdes. Uma das dificuldades, explica Odilon, foi escrever a quatro mãos. "Cada um tem seu estilo", diz.
Outro desafio e tanto foi produzir um texto menos acadêmico, não muito extenso e em linguagem acessível ao grande público.
Para Leandro, uma das revelações mais impressionantes do livro é a que estabelece uma relação histórica de grandes nomes da sociedade brasileira, como o militar João Cândido (1880-1969), o poeta Vinícius de Moraes (1913-1980), o lutador Hélio Gracie (1913-2009), o ativista Abdias do Nascimento (1914-2011) e o cineasta Glauber Rocha (1939-1981), com o movimento integralista.
Aspirante a escritor, Plínio Salgado e seus seguidores sofreram duras críticas de alguns autores famosos. Nas páginas do jornal carioca A Manhã, o jornalista gaúcho Aparício Torelly, o Barão de Itararé (1895-1971), apelidou os "camisas-verdes" de "galinhas-verdes". O gracejo fazia referência à famosa batalha na Praça da Sé, no dia 7 de outubro de 1934, que deixou um saldo de seis mortos e 50 feridos.
Na ocasião, os antifascistas colocaram os integralistas para correr. "Certa vez, o Barão de Itararé confessou que, por pouco, não aderiu ao integralismo", relata Leandro. "Em uma anedota, ele disse que pensou que o lema fosse 'Adeus, pátria e família!'".
O escritor capixaba Rubem Braga (1913-1990), outro ferrenho opositor do integralismo, chegou a chamar Plínio Salgado de "odioso charlatão". "Nas mãos magrelas deste homem, o Brasil seria o reino da estupidez", vociferou Braga em artigo publicado no jornal Folha do Povo. "Sua fraqueza moral, sua doutrina cheia de besteiras e seus fins mesquinhos são evidentes".
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