Atenção: Esta reportagem contém descrição de cenas de violência doméstica que podem ser perturbadoras.
Quando Joana*, se casou com o empresário Carlos*, no início dos anos 2000, ele era dono de um pequeno negócio. Os dois ficaram juntos por 18 anos e, ao longo desse tempo, a empresa cresceu vertiginosamente.
Pouco a pouco, o estilo de vida do casal — que já era de classe média alta — foi se tornando luxuoso. Mas Joana não tinha ideia do tamanho da fortuna do marido até eles se separarem — ou melhor, até ela perceber que foi enganada no processo de divórcio.
Joana, hoje com 50 anos, dedicou a vida toda à família e ao marido e não queria se separar. Ela fez diversas fertilizações para engravidar do filho do casal, hoje um adolescente.
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Presa após três anos organização criminosa que praticava o golpe do motoboyAnvisa veta uso de remédio defendido por Bolsonaro contra a COVID-19Sancionada com vetos lei que permite quebra temporária de patentesDivórcios em queda no primeiro ano da pandemia"Ele disse que ela nunca ia sentir falta de nada, que ia deixar o filho do casal e ela em boa situação. Fez um acordo para ela ficar com um apartamento de R$ 5 milhões e R$ 30 milhões em aplicações", conta Anderson Albuquerque, advogado de Joana.
Sem saber exatamente qual era o real patrimônio do marido — e portanto do casal, já que eram casados com comunhão de bens — Joana aceitou o acordo.
Foi só quando viu duas aberturas de capital da empresa de Carlos e o nome dele na lista de bilionários do Brasil que ela percebeu que tinha sido enganada. Foi então que procurou Albuquerque e descobriu que o valor total do patrimônio na verdade estava na casa dos bilhões de reais.
"Em grande separações — com valores acima de R$ 10 milhões — os processos de divórcio deixam de ser direito de família e viram questão de fraude financeira e direito tributário", afirma Albuquerque, que se especializou em direito tributário e empresarial antes de começar a coordenar o departamento de direito de família de seu escritório.
No caso de Joana, Carlos simplesmente havia omitido o valor do patrimônio na época da separação. "Ele não apresentou sua participação societária em diversas empresas", diz Albuquerque.
No mês passado, Joana conseguiu uma decisão na Justiça que garantiu seu direito de ter acesso a todos os documentos contábeis da empresa nos últimos 18 anos.
Com o valor exato do patrimônio nas mãos de Joana, disse o juiz do caso, as duas partes podem tentar um acordo — se não, os documentos serão essenciais em um futuro processo sobre a partilha de bens.
"Como nesse caso, muitas vezes é um problema que vai além da família. A fraude do marido com a mulher pode gerar consequências para a empresa como um todo", diz Albuquerque.
A defesa de Carlos ainda não se manifestou sobre o caso.
Escondendo o patrimônio
Diferente da grande maioria de escritórios de direito de família, Albuquerque só aceita casos de mulheres e filhas, nunca dos maridos.
"Nessa área a gente só advoga para mulher. Ajuda a manter a coerência, porque se você sustenta algo para um lado (da esposa) em um caso e depois argumenta o oposto atendendo outro caso (do marido), você descaracteriza sua própria argumentação", explica o advogado.
Segundo Albuquerque, na maioria dos grandes casos de divórcio que ele atende, a principal estratégia dos maridos para ocultar patrimônio é simplesmente não apresentar os documentos para as mulheres e seus advogados.
"Muitas mulheres, mesmo tendo uma vida de luxo, não sabem detalhes sobre a vida financeira da família, não sabem ou não conseguem provar os seus custos de vida e não conhecem os seus direitos", diz ele, acrescentando que muitas fraudes passam batido por advogados de direito de família que não entendem tão bem da parte financeira.
Além disso, afirma, muitos maridos mantêm controle das esposa em relacionamentos abusivos e elas têm medo até de procurar um advogado para entender quais são seus direitos.
"Só de ela seguir um advogado de direito de família nas redes sociais já é motivo para discórdia. O marido diz que ela não confia, pergunta se quer se separar. Eu recebo centenas de mensagens por dia de mulheres dizendo que não podem me seguir porque se o marido descobre, vai dar problema", afirma Albuquerque.
Alterações contratuais e violência física
O advogado explica que, embora omitir dados seja a principal estratégia, não é a única. Há casos em que há inclusive o uso de documentos forjados e até violência física envolvidos.
Foi o que aconteceu no divórcio de Lígia* e João*, empresários da região sul do Brasil que se separaram neste ano.
Os dois se conheceram em 2009. Os dois começaram juntos um negócio que ao longo dos anos foi crescendo e se tornou um grande grupo empresarial.
Os dois foram casados por 12 anos e tiveram uma filha. Quando João quis se separar, o patrimônio do casal valia cerca de R$ 500 milhões, afirma Albuquerque.
Nesse caso, Lígia sabia de seus direitos, mas foi pega de surpresa por uma tentativa de golpe do marido.
Em dezembro de 2020, João fez uma alteração contratual fazendo uma mudança societária através de um certificado digital — ele passou as empresas para o nome da mãe dele, sem avisar a esposa. Mas faltava a assinatura física dela para a mudança se concretizasse.
Em abril deste ano, quando o casal já não morava junto, após um evento de confraternização na sede das empresas, ele a obrigou a assinar diversos documentos, incluindo o contrato com alteração societária, com uso de violência.
João estava acompanhando Lígia e a filha do casal até o carro quando começou a violência. "Ele agarrou meu pescoço e me deixou sem voz, impedindo que eu pedisse socorro. Em seguida me arremessou sobre o veículo", conta ela.
Lígia conseguiu entrar no caso para tentar se proteger, mas João abriu a porta, a retirou do carro e a arremessou contra a parede. Diversas pessoas viram a cena — incluindo a filha pequena do casal.
No mesmo dia, Lígia foi à delegacia fazer um boletim de ocorrência. Por causa da violência, o caso chegou ao Ministério Público e João enfrenta um processo criminal.
Além disso, Lígia entrou na Justiça pedindo o reconhecimento da nulidade da alteração contratual, indenização por danos morais e outras demandas para proteger seu patrimônio.
"A fraude ficou bem clara porque ele cometeu um erro. A alteração contratual tinha sido feita em 2020, mas quando ele a obrigou a assinar, o contrato tinha a data deste ano", afirma Albuquerque, que advoga para Lígia no processo.
Na ação, João nega qualquer agressão e afirma que a ex-esposa assinou o contrato por vontade própria.
Esvaziamento de patrimônio
Há casos em que maridos esvaziam seu patrimônio para que as esposas não tenham acesso aos valores que têm direito.
Hoje com 50 anos, Clara* tenta obter há 12 anos o valor que foi acordado com o ex-marido Rodrigo* quando se separaram. Os dois se conheceram em 1995 e ficaram juntos por quase 15 anos.
Quando se divorciaram, os dois fizeram um acordo de partilha de bens em que ela ficaria com o valor de R$ 1 milhão, mas Rodrigo nunca transferiu o valor para a ex-mulher.
Clara ficou anos tentando obter o pagamento, mas teve dificuldade porque Rodrigo havia esvaziado completamente seu patrimônio, evitando que a Justiça fizesse a expropriação de seus bens.
Antes mesmo de se separarem, em 2007, ele vendeu sua participação societária em grandes empresas de câmbio para um banco. O valor da negociação divulgado foi de cerca U$ 40 milhões (R$ 81,5 milhões de reais, com câmbio de agosto de 2007)
Segundo a Justiça, o valor devido por ele à Clara hoje é de R$ 30 milhões — considerando o montante do acordo que não foi pago com juros e correção monetária mais a pensão alimentícia que ele deve às filhas do casal.
Rodrigo nega irregularidades, mas não tem mais direito a recurso na Justiça — já passaram os prazos para contestar as ações de alimentos e não há possibilidade de recurso sobre o valor do acordo feito legalmente pelo casal.
Hoje cliente de Albuquerque, Clara entrou com um pedido para que a dívida do ex-marido seja redirecionada para o banco que absorveu suas quotas societárias nas empresas de câmbio.
"É mais um exemplo de como uma questão conjugal pode ter efeitos para além da família", diz Albuquerque. "Hoje eu tenho até investidores que procuram consultoria para avaliar regime de comunhão de bens de sócios para entender melhor os riscos de investir em certas empresas."
*O nome das pessoas citadas foram alterados para proteger suas identidades
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