Com o aumento de ondas de frio e calor extremos, o impacto das mudanças climáticas na morte de pessoas tem ficado cada vez mais evidente ao redor do mundo.
Pesquisadores calculam mais de 5 milhões de óbitos por ano, principalmente de pessoas com mais de 65 anos.
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A cidade de São Paulo costuma ter temperaturas médias que variam entre 17ºC e 23ºC, mas os episódios de ondas de frio e calor têm sido mais frequentes e às vezes mais longos.
Uma análise de dados globais da BBC apontou que os números de dias de calor extremo dobraram ao redor do mundo desde a década de 1980. Por cerca de 14 dias por ano, entre 1980 e 2009, as temperaturas passaram dos 50ºC. Entre 2010 e 2019, esse número subiu para 26 dias.
Esse aumento é totalmente causado pela queima de combustíveis fósseis, como a gasolina e o diesel, afirma Friederike Otto, diretor do Instituto de Mudança Ambiental da Universidade de Oxford, no Reino Unido.
Em junho deste ano, estima-se que quase 500 pessoas morreram, principalmente idosos que viviam sozinhos, durante uma onda de calor extremo no Canadá. As temperaturas chegaram a 49,6ºC.
Neste ano, São Paulo bateu recordes de temperaturas baixas, chegando a -3ºC em algumas partes. Especialistas explicam que a situação é ainda mais grave em países como o Brasil por fatores como vulnerabilidades socioeconômicas e escassez de habitações preparadas para conter o frio.
Mas por que o corpo humano, capaz de se adaptar aos climas mais diversos do planeta, pode morrer com calor ou frio extremo? Que tipo de doenças pré-existentes aumentam as chances de isso ocorrer e o que pode explicar impactos diferentes em homens e mulheres mais velhos?
E o que se deve esperar para o Brasil nos próximos anos, com o crescente aquecimento global?
"A gente fez um estudo e identificou que o clima já está mudando de alguma maneira em todas as regiões do Brasil. Sejam temperatura, chuvas... Esses eventos que observamos nas últimas décadas já são o sinal da mudança do clima", afirmou à BBC News Brasil Lincoln Muniz Alves, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e um dos autores do relatório mais recente do IPCC, braço da Organização das Nações Unidas (ONU) para o clima.
Mortes por temperaturas extremas em São Paulo
O estudo assinado por Sara Lopes de Moraes e Ligia Vizeu Barrozo, ambas da USP, e por Ricardo Almendra, da Universidade de Coimbra, se debruçou sobre dados municipais de mortalidade e indicadores de temperatura e umidade de 2006 a 2015 em São Paulo, cidade de verões quentes e úmidos e invernos secos.
Com os dados à mão, os pesquisadores separaram por sexo informações diárias sobre mortes por doenças cardiovasculares e respiratórias.
Segundo o estudo, 151 mil pessoas com mais de 65 anos morreram em São Paulo de 2006 a 2015 em decorrência de doenças cardiovasculares e 64.778, de doenças respiratórias. Entre elas, 56.885 óbitos foram registrados como doença isquêmica do coração e 38.084 por doença cerebrovascular, como acidente vascular cerebral isquêmico e hemorrágico.
O objetivo era identificar, por exemplo, se havia alguma diferença significativa na quantidade e nas causas de mortes de alguma parcela específica dessa população durante ondas de calor ou de frio. Em especial os idosos, por serem mais vulneráveis às temperaturas extremas.
"As pessoas com mais de 65 anos de idade são mais vulneráveis, pois apresentam uma diminuição da capacidade termorreguladora se comparada com a dos adultos mais jovens. Além disso, é preciso considerar que as pessoas mais velhas na maioria das vezes apresentam doenças pré-existentes (hipertensão, diabetes, colesterol alto, entre outras), se desidratam com mais frequência, são socialmente mais isoladas, podem apresentar limitações financeiras que as impedem de viver em condições térmicas adequadas/que as impedem de serem atendidas nos serviços de saúde em tempo hábil e hábitos comportamentais (tabagismo, sedentarismo, sobrepeso ou obesidade) que podem contribuir para o aumento do risco de mortalidade nos eventos extremos, como as ondas de frio e as ondas de calor.", explica Moraes em entrevista à BBC News Brasil.
Para identificar quantas daquelas mortes eram associadas a esses fenômenos climáticos, o trio de pesquisadores também precisou definir o que seria considerado um evento climático extremo, já que não há um critério definitivo e único para todos os lugares do planeta.
E não se trata apenas da temperatura em si, mas também da duração da onda de frio ou calor, da diferença dos termômetros em relação à média, dos níveis de poluição, entre outras variáveis.
E quais foram as conclusões? Cada corpo responde de uma maneira a temperaturas extremas, mas foram identificados alguns padrões na população paulistana.
"Os homens são mais vulneráveis às doenças cerebrovasculares (AVC isquêmico principalmente) nas ondas de frio e de calor, ou seja, apresentam uma maior probabilidade de morrerem por AVC isquêmico quando as ondas de frio e de calor ocorrem. As mulheres, por sua vez, apresentam maior probabilidade de irem a óbito por doenças isquêmicas do coração (o infarto agudo do miocárdio é uma doença mais comum neste conjunto) na ocorrência de ondas de frio", conta Moraes.
A maior taxa de mortes em ondas de calor ocorre quando elas duram três ou mais dias, por exemplo. Há também nesses períodos de altas temperaturas um risco maior de morte por AVC isquêmico do que hemorrágico. Segundo o Ministério da Saúde, o AVC isquêmico é o tipo mais comum e ocorre quando há obstrução de uma artéria, impedindo a passagem de oxigênio para células cerebrais, que acabam morrendo. Geralmente é causado por trombose ou embolia.
O AVC hemorrágico, por outro lado, ocorre quando há o rompimento de um vaso cerebral e é causado principalmente por pressão alta e ruptura de um aneurisma (dilatação de uma artéria).
Durante a pandemia de covid, por exemplo, estudos apontaram que o risco de ser internado por coronavírus caiu no Brasil durante ondas de calor, mas nesses mesmos períodos a mortalidade por doenças cardiovasculares e respiratórias aumentou. Segundo especialistas, isso se acentua em indivíduos vulneráveis porque pessoas com comorbidades são mais propensas a morrer antes de receber assistência médica adequada ou de ser internada durante ondas de calor.
Mas por que as mulheres e os homens são afetados de maneiras distintas durante essas ondas de temperatura extrema?
Segundo o trio de pesquisadores, as mulheres são mais afetadas que os homens sob temperaturas altas por causa de mudanças nos hormônios reprodutivos, da expectativa de vida mais alta e outros fatores psicológicos e de regulação da temperatura do corpo em situações de calor.
Por outro lado, "homens podem ter um risco maior de morrer por diversas causas durante exposição a temperaturas extremas porque eles têm mais doenças cardiovasculares e comportamentos menos saudáveis, além de serem menos propensos a fazer check-ups periódicos de saúde e de buscarem menos assistência médica que as mulheres em relação a condições de saúde pré-existentes", como diabetes e colesterol alto.
Para Marco Túlio Cintra, primeiro-vice-presidente da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia e professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), diversas doenças se manifestam de modo diferente entre os sexos. Ele cita como exemplo o grupo das doenças reumáticas, com os homens tendo mais gota e as mulheres com mais casos de lúpus eritematoso sistêmico.
No caso dos impactos diferentes das ondas de frio e calor, Cintra afirma à BBC News Brasil que os cientistas ainda precisam se aprofundar nos estudos para entender de fato quais são os mecanismos fisiológicos ligados a esses maiores riscos, a essa maior susceptibilidade a temperaturas extremas. Para ele, as hipóteses passam por questões hormonais ou diferentes expectativas de vida entre os sexos, com mulheres vivendo mais em geral por diversos motivos, como menor exposição ao risco e maior cuidado com a própria saúde.
"Existem algumas situações que podem explicar isso, por exemplo, como as mulheres vivem mais do que os homens. Nós temos muitos idosos com idades mais avançadas, mais debilitadas. E que pode ser por isso que essas viúvas tenham uma debilidade clínica, física, maior e com isso, maior susceptibilidade a ter consequência em ondas de temperatura extrema. É uma possibilidade. Outra são as diferenças hormonais, ou até o mesmo perfil de envelhecimento de homens e mulheres, com diferenças na fisiologia do envelhecimento relacionadas à capacidade do organismo se adaptar a condições mais extremas de temperatura."
O estudo também identificou um maior risco de morte durante ondas de frio do que nas de calor. Há diversos fatores que podem explicar esse dado, como a falta de moradia adequada na cidade de São Paulo, onde pelo menos 2 milhões dos 12,3 milhões de habitantes vivem em favelas e lares de baixa qualidade.
Mas os pesquisadores apontam principalmente para a hipótese de aclimatização dos habitantes. Ou seja, "pessoas que vivem em condições ambientais mais quentes são mais adaptadas a eventos de calor extremo e mais vulneráveis a eventos de frio extremo".
Por que as pessoas morrem 'de calor' ou 'de frio'?
A influência das temperaturas e das condições de vida na saúde das pessoas é percebida há mais de 2 mil anos. Mas foi apenas a partir do início do século 14, na Europa, que a prática de registro e análise de dados de saúde e mortalidade teve início. Desde então, tornou-se possível estudar com maior precisão o impacto dos períodos de calor ou frio extremo na vida das pessoas, e a mudança ao longo dos anos.
Problemas cardiovasculares e respiratórios são agravados por conta do calor e frio extremo, mas pessoas com males preexistentes como diabetes, obesidade, colesterol alto e tabagismo têm maior risco de mortalidade por temperaturas extremas. Outras variáveis, como poluição do ar e a circulação de patógenos como o vírus influenza, contribuem para o aumento de mortes relacionadas à temperatura.
Os primeiros registros a respeito da relação entre calor extremo e mortalidade são do começo do século 20. Na década de 1930 surgem os primeiros dados compilados sobre um risco de mortalidade maior entre pessoas com idade entre 40 a 80 anos.
Ao longo das décadas, o desenvolvimento socioeconômico ajudou a reduzir a vulnerabilidade humana às temperaturas extremas, graças a melhores condições de moradia, transporte, vestuário e alimentação. Mas até hoje há poucos estudos que investigam a fundo as causas específicas de mortalidade associadas a ondas de frio e calor extremo e quais pessoas são mais vulneráveis a essas situações.
Os seres humanos contam com um sistema de termorregulação que faz com que o calor do corpo se mantenha geralmente entre 36,5º C e 37,5º C.
Quando o calor no ambiente ultrapassa a taxa de dissipação de calor do corpo, esse sistema termorregulador passa por um processo denominado termólise, que é quando ele trabalha para perder calor por meio do suor ao mobilizar o sistema de resfriamento do corpo. Na direção contrária, o mesmo sistema termorregulador passa a se dedicar à termogênese, que é a manutenção de calor interno do organismo para lidar com o frio externo.
Há diversos mecanismos envolvidos. Por exemplo: para diminuir a temperatura do corpo, os vasos sanguíneos podem dilatar, o que aumenta a circulação do sangue e tende a baixar a pressão. Em temperaturas muito baixas, as artérias diminuem a passagem do sangue evitando assim a redução da temperatura corporal.
Um corpo saudável se autorregula ao longo do dia e não fica superaquecido. Mas o que acontece quando ele não consegue diminuir ou aumentar a temperatura? E o que ocorre quando a exposição ao calor vai além da capacidade de resfriamento do corpo?
O principal problema é a desidratação. Em geral, o corpo de uma pessoa adulta saudável pode perder cerca de 2 a 2,6 litros de água por dia — o suor, por exemplo, aparece como resposta fisiológica do hipotálamo (responsável pela regulação da temperatura corporal).
Homens costumam suar mais do que as mulheres, já que a testosterona é o fator que gera maior atividade das glândulas sudoríparas, responsáveis pelo suor. E parte dos idosos, já com a regulação do corpo debilitada, pode perder ainda mais água do que deveria, sem perceber ou repor a perda.
A menor quantidade de líquidos em circulação no corpo deixa o sangue mais denso e aumenta a probabilidade do surgimento de algum coágulo de sangue ou outro tipo de obstrução. O coração também passa a bater mais rápido, a ficar sobrecarregado porque tenta aumentar a pressão que caiu com o maior número de vasos dilatados ao mesmo tempo para regular a temperatura. Assim, o risco de algum problema grave no coração também aumenta. Sem falar de câimbras, tontura, desmaio.
Por outro lado, com o frio os vasos sanguíneos se contraem para manter o corpo aquecido e, por extensão, acaba aumentando a pressão arterial. Em uma onda de frio, essa mudança pode acabar levando a um AVC isquêmico (que tem a pressão alta como principal causa, como dito acima), por exemplo, ou a um agravamento da hipertensão ao longo dos invernos, com diversas outras consequências para o corpo.
"Tudo isso tem impacto direto na saúde humana. Do ponto de vista da fraqueza corporal, as ondas de calor que deixam as pessoas um pouco mais debilitadas, as reações psicomotoras também ficam alteradas, incluindo percepção de risco e concentração", afirma o climatologista Lincoln Alves, pesquisador do Inpe e do IPCC.
Os efeitos dessas temperaturas extremas podem ser percebidos tanto de forma instantânea quanto ao longo de décadas. A longo prazo, estudos apontam que os efeitos centrais das mudanças climáticas na saúde das pessoas abrangem problemas de pele, danos aos olhos por conta da exposição à radiação ultravioleta, maior incidência de doenças cardiovasculares e respiratórias, alterações no metabolismo, entre outros.
Situação climática vai piorar ainda mais no Brasil
Em agosto de 2021, o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, o braço da ONU para tratar do clima) publicou um relatório no qual afirma que as emissões globais de dióxido de carbono, por exemplo, teriam de ser reduzidas cerca de 7% ao ano até 2050. A importância de se reduzir as emissões de gases de efeito estufa e limitar o aquecimento global a 1,5ºC.
O efeito estufa é um efeito natural do planeta Terra, composto por vários gases, que faz a regulação térmica que permite a vida no planeta. O problema atual é que o fenômeno tem se acentuado muito mais do que o normal. "Tem se observado, ao longo de milhares de anos, um aumento das concentrações desses gases associado às emissões antrópicas , relacionado à queima de combustíveis fósseis", afirma Alves, um dos autores do relatório.
O aumento da temperatura e o aumento da frequência de ondas de calor e frio extremos estão relacionados à emissão desses gases do efeito estufa.
O Acordo de Paris estabeleceu como nível crítico um aumento de 1,5ºC. A média global atual está entre 1,1ºC e 1,2ºC, mas ao observarmos regiões do Brasil, como o Centro-Oeste, o Norte e o Nordeste, já é possível perceber aquecimento acima do patamar de 2ºC. "Essas temperaturas regionais, por vezes, são muito maiores do que a temperatura média global", explica o climatologista.
Segundo ele, as projeções indicam que o Brasil vai sofrer bastante com esses impactos: haverá uma maior frequência e intensidade desses eventos extremos. Alves ressalta também as vulnerabilidades socioeconômicas do país. Como o Brasil é um país tropical em desenvolvimento, quase não há moradias com infraestrutura adequada para lidar com o frio, como há em países do hemisfério Norte. Dessa forma, haverá mais sofrimento e riscos para idosos brasileiros que geralmente moram em lares sem calefação e para outros segmentos mais vulneráveis, como a população em situação de rua.
E o que esperar daqui em diante?
Alves afirma que há um cenário otimista, em que o mundo como um todo passa a emitir menos gases do efeito estufa do que emite hoje, e um cenário pessimista, no qual os níveis de emissão continuam iguais ou piores.
"Mesmo num cenário otimista, em que os países se comprometem a ter uma redução drástica nas emissões, ainda assim se projeta um aumento dos eventos extremos porque existe também essa questão do tempo de vida desses gases na atmosfera. Não é instantâneo. Se todos os países pararem as emissões, não será como se a temperatura fosse baixar imediatamente ou nos anos seguintes. Será em torno de 20, 30 anos", explica o especialista.
Mas o que poderia ser feito para mitigar o impacto do aquecimento global na saúde humana além da redução da emissão excessiva de gases do efeito estufa, mudança que depende principalmente de governantes e grandes empresas? Afinal, levantamento do Climate Accountability Institute apontou que 20 companhias estão por trás de um terço das emissões de gases do efeito estufa, entre elas a estatal petrolífera brasileira Petrobras.
Para Moraes, da USP, há medidas em diversas áreas que podem ser adotadas. No segmento urbanístico, ela defende a expansão das áreas verdes (a fim de amenizar o acúmulo de calor em determinadas áreas urbanas) e estratégias de infraestrutura "que podem auxiliar no resfriamento das áreas urbanas que apresentam maior risco, como os telhados verdes, telhados e asfaltos brancos, áreas com sombras, centros de resfriamento que podem atender a população mais vulnerável durante os eventos extremos de calor".
A geógrafa afirma também ser importante melhorar a comunicação pública dos riscos das temperaturas extremas para as pessoas mais vulneráveis, como as pessoas com mais de 65 anos.
Alves, do Inpe, fala ainda em melhorar a segurança das pessoas que trabalham em setores como construção civil e agricultura, como intervalos de descanso e vestuário apropriado. Ele defende também melhorias na qualidade das habitações (principalmente nas ondas de frio) e a adoção de medidas às vésperas de fortes ondas de calor, por exemplo.
"Se a previsão apontar uma onda de calor na próxima semana, as casas de repouso têm que se preparar de formas específicas, identificar quais são os idosos que são mais sensíveis, garantir que o ambiente estará bem ventilado, para que essas pessoas não sejam tão impactadas."
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