A Polícia Civil concluiu, no início desta semana, a investigação sobre a suspeita de abordagem racista em uma loja da Zara em Fortaleza. O gerente do estabelecimento, um homem de 32 anos, foi indiciado pelo crime de racismo.
Segundo a investigação policial, a delegada negra Ana Paula Barroso foi impedida de entrar em uma loja da Zara em um shopping de Fortaleza na noite de 14 de setembro. O caso foi motivado, segundo o inquérito policial, por racismo.
O inquérito afirma que a empresa possui um "código de conduta" para identificar quando pessoas que não são consideradas "dentro do padrão da loja" entram no local para que elas passem a ser acompanhadas de perto por funcionários.
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"É como se a pessoa deixasse de ser um consumidor para se tornar uma suspeita dentro do estabelecimento", explicou a delegada Arlete Silveira, diretora do Departamento de Proteção a Grupos Vulneráveis do Ceará, durante coletiva de imprensa na terça-feira (19/10).
O delegado-geral da Polícia Civil do Ceará, Sérgio Pereira dos Santos, disse que testemunhas teriam relatado que esse "código de conduta" estaria sendo aplicado a "pessoas com roupas mais simplórias ou 'pessoas de cor'".
A loja nega as acusações e diz que não há qualquer "código interno" para discriminar clientes.
"A Zara rechaça qualquer forma de racismo, que deve ser tratado com a máxima seriedade em todos os âmbitos", diz, em nota encaminhada à BBC News Brasil.
A Zara é uma das maiores lojas do mundo no segmento "fast-fashion" (produção em larga escala e com baixos custos de moda inspirada nas passarelas). A empresa pertence ao grupo espanhol Inditex, do magnata Amancio Ortega, um dos cinco bilionários mais ricos da Europa.
Todos os apontamentos do inquérito policial em Fortaleza serão analisados pela responsável por conduzir o caso no Ministério Público, a promotora de Justiça Ana Cláudia de Morais. Ela ainda não teve acesso à investigação policial.
"Quando o inquérito vier, a gente vai analisar todas as circunstâncias, o que as delegadas disseram, o que a loja disse, as testemunhas, o material apreendido, se o delegado tipificou no crime que a gente acha coerente ou se tem mais algum", explica à BBC News Brasil.
A promotora afirma que tem evitado ler notícias sobre o caso e apenas saberá detalhes das investigações policiais quando receber o inquérito.
Ela frisa que há pontos fundamentais para entender o caso e que serão importantes na leitura do inquérito policial.
Abaixo, os pontos que a promotora considera importantes sobre a investigação do caso. A BBC News Brasil mostra o que a Polícia Civil diz sobre eles.
1) Clientes sem máscara na loja
O gerente da Zara no shopping de Fortaleza alegou que a delegada Ana Paula foi impedida de entrar na loja porque não estava usando a máscara adequadamente.
A promotora ressalta que é fundamental saber se outras pessoas que também estavam com a máscara abaixada foram barradas no estabelecimento, para indicar se a delegada recebeu um tratamento diferente.
Segundo a Polícia Civil do Ceará, a delegada estava com a máscara abaixada quando entrou no local porque consumia um sorvete.
"As imagens são bem claras. A vítima entra na loja e ele (o gerente) se dirige ao encontro dela com dedo em riste, pouco diálogo, aponta para fora da loja e a coloca para fora do estabelecimento", disse o delegado-geral Sérgio Pereira dos Santos.
Santos afirmou que o gerente do estabelecimento não mencionou o sorvete ou qualquer problema sanitário. "Ele alegou que ela foi retirada da loja por questões de segurança", contou.
Segundo o delegado, posteriormente o gerente mudou a versão e passou a afirmar que Ana Paula foi barrada por questões sanitárias.
Conforme o inquérito, imagens registradas por câmeras da loja apontam que outros clientes com máscaras abaixadas, ou até mesmo sem o item, não foram impedidos de entrar no local. "A diferença é que eram pessoas claras e de cabelos claros", disse o delegado.
A Zara nega qualquer tipo de discriminação e diz, em nota à BBC News Brasil, que a sua atuação durante a pandemia é fundamentada na adoção de protocolos de proteção à saúde, "já que o decreto governamental em vigor estabelece a obrigatoriedade do uso de máscaras em ambientes públicos".
"Qualquer outra interpretação não somente se afasta da realidade como também não reflete a política da empresa", diz a nota.
Ainda sobre as imagens registradas no local, os delegados dizem que a loja dificultou o acesso às câmeras.
"A autoridade policial, ao tomar conhecimento, pediu imagens à loja. Em um primeiro momento, a loja disse que ia fazer uma requisição ao jurídico. Em um segundo momento, a Polícia Civil reiterou o ofício falando da necessidade de preservação das imagens para fins de provas", afirmou o delegado Santos.
Segundo a Polícia Civil, não houve uma resposta da loja para assegurar que os vídeos seriam entregues e foi necessário pedir à Justiça um mandado de busca e apreensão de todos os equipamentos de registro de imagens no local.
Os vídeos do local e os apontamentos do inquérito serão analisados pela promotora.
Na nota à BBC News Brasil, a Zara diz que ainda não teve acesso ao inquérito sobre o caso ainda, mas afirma que "colaborará com as autoridades para esclarecer que a atuação da loja durante a pandemia Covid-19 se fundamenta na aplicação dos protocolos de proteção à saúde".
2) O "código de conduta"
Um item fundamental sobre o caso, segundo a promotora, é sobre o relato feito pela Polícia Civil de que a Zara teria um suposto "código de conduta".
"Ainda não posso afirmar que existe esse "código de conduta" (por não ter recebido o inquérito). Mas será apurado", diz. A promotora comenta que caso realmente exista, essa medida pode ser uma espécie de "autorização ou ordem para agir" com discriminação.
Testemunhas que trabalharam na loja teriam relatado à polícia que esse "código" é comunicado por meio da mensagem "Zara zerou". "É dito no sistema do som da loja para que todos entendam o código, tomem conhecimento e fiquem em estado de alerta", disse o delegado Santos.
Segundo o delegado, testemunhas teriam dito que essa mensagem era usada no alto-falante toda vez que um cliente negro ou com roupas simplórias entrasse na loja.
Segundo a promotora, caso seja comprovada a existência desse código é fundamental descobrir onde surgiu essa orientação e se está presente em outras unidades da empresa.
3) Episódios passados
Outro ponto citado pelas autoridades policiais que investigaram o caso é que há mais relatos sobre episódios semelhantes em relação à Zara.
"Infelizmente, se a gente fizer pesquisa, e é normal que a gente faça uma investigação sobre a vida pregressa do acusado ou da loja, a gente vê indícios fortes de que esse tipo de tratamento discriminatório já foi registrado diversas vezes no mundo todo, não só no Brasil, pela rede de lojas Zara", declarou o delegado Santos.
Segundo os delegados, outras pessoas disseram ter vivido situações semelhantes à de Ana Paula após o caso dela ser divulgado. Um desses casos se tornou alvo de um outro inquérito da Polícia Civil do Ceará.
De acordo com a Polícia Civil, a mulher de 27 anos, que também é negra, relatou nas redes sociais que tentou entrar na Zara, mas logo pediram para ela sair pois estava com a máscara abaixada porque consumia um sorvete. No mesmo momento, disse a mulher, outras pessoas brancas conseguiram entrar no local com as máscaras abaixadas enquanto comiam.
Esse segundo caso ainda é investigado pela Polícia Civil.
Conforme já citado acima, a Zara diz em nota que rechaça qualquer forma de racismo e afirma que o tema "deve ser tratado com a máxima seriedade em todos os âmbitos".
4) Indiciamento
A promotora Ana Cláudia afirma que analisará o indiciamento do gerente da loja pelo crime de racismo.
Há diversas condutas referentes a esse tipo de crime. No caso do gerente da loja da Zara, a Polícia Civil o indiciou por "recusar ou impedir acesso a estabelecimento comercial, negando-se a servir, atender ou receber cliente ou comprador". Essa prática tem pena de reclusão de um a três anos.
Após analisar o inquérito, a promotora diz que avaliará se houve outro tipo de crime sofrido pela delegada que possa ser incluído na denúncia.
Ainda não há prazo para que a promotora conclua os procedimentos sobre o caso e decida se irá encaminhar denúncia à Justiça.
5) Danos morais
Além da questão criminal, o caso também é alvo de pedido de indenização por danos morais.
No fim de setembro, o movimento Educação e Cidadania de Afrodescendentes e Carentes (Educafro) e o Centro Santo Dias de Direitos Humanos, da Arquidiocese de São Paulo entraram com uma ação civil pública na Justiça do Ceará para pedir R$ 40 milhões de indenização à Zara.
Segundo a ação, o ato cometido na loja não afetou apenas a delegada, mas toda a sociedade. As entidades pedem indenização como reparação de "dano moral coletivo e dano social infligido à população negra e ao povo brasileiro de modo geral, em razão de abordagem ilícita e vexatória".
Além disso, a Associação dos Delegados de Polícia do Ceará já manifestou que entrará com um pedido de indenização por danos morais em razão do episódio.
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