A cada ano, sete mil crianças e adolescentes são mortos de forma violenta no Brasil e ao menos 45 mil são vítimas de violência sexual. Os números foram revelados pelo Panorama da Violência Letal e Sexual Contra Crianças e Adolescentes no Brasil, lançado nesta sexta-feira, 22, pelo Unicef, braço das Nações Unidas para a infância, e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).
O estudo diz que a violência ocorre de formas variadas, conforme a faixa etária da vítima. Crianças morrem na maior parte das vezes em decorrência de violência doméstica, cujo autor é conhecido, como um pai ou um padrasto. Um caso de grande repercussão neste ano foi a morte de Henry Borel, de quatro anos. O namorado da mãe do garoto, o ex-vereador do Rio conhecido como Dr. Jairinho, foi preso acusado do crime - ele nega.
No ano passado, 300 menores de até nove anos de idade foram mortos de forma violenta no País. Foi praticamente um caso por dia, boa parte deles dentro da própria casa. O mesmo vale para a violência sexual, em geral também cometida dentro de casa por pessoas próximas. Já os adolescentes, que representam a maioria das vítimas, são mortos majoritariamente na rua. São vítimas, apontam os pesquisadores, da violência armada e do racismo. O estudo também destaca a alta proporção de jovens mortos durante intervenções policiais.
"A violência doméstica é um crime contra a infância. A violência urbana é um crime contra a adolescência, que atinge principalmente meninos negros", diferencia Florence Bauer, representante no Brasil da Unicef. "Embora sejam fenômenos complementares e simultâneos, é crucial entendê-los também em suas diferenças para desenhar políticas públicas efetivas de prevenção e resposta às violências", acrescenta ela.
A diretora executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Samira Bueno, afirma que a violência contra crianças e adolescentes é um problema grave, que precisa ser cada vez mais discutido por nossa sociedade. "São vítimas dentro de suas próprias casas enquanto são pequenas e sofrem com a violência nas ruas quando chegam à pré-adolescência", diz ela. "O poder público precisa encarar a questão com seriedade e evitar que mais vidas sejam perdidas a cada ano."
O trabalho é uma análise inédita dos boletins de ocorrência das 27 unidades da Federação registrados nos últimos cinco anos. Abrange mortes violentas intencionais (homicídio doloso, feminicídio, latrocínio, lesão corporal seguida de morte, mortes decorrentes de intervenção policial) e a violência sexual contra crianças e adolescentes.
Entre 2016 e o ano passado foram identificadas 35.626 mortes violentas intencionais de crianças e adolescentes de 0 a 19 anos de idade no Brasil. Isso corresponde a uma média de 7,1 mil mortes violentas por ano. São cerca de 20 por dia.
A maioria das vítimas de mortes violentas neste período era de adolescentes; 31 mil casos estavam na faixa etária de 15 a 19 anos. Entretanto, no mesmo período, foram identificadas pelo menos 1.449 mortes violentas de crianças de até nove anos de idade. O número dessas mortes vem aumentando desde 2016, chegando a 300 crianças em 2020.
Olhando apenas para a primeira infância (até quatro anos), os dados são ainda mais preocupantes. Nos dezoito Estados que dispunham dos dados completos para o período, as mortes violentas de crianças de até quatro anos aumentaram 89% de 2016 a 2020. Passaram de 121 casos para 229.
O aumento foi puxado pelo crescimento do número de mortes por arma de fogo nessa faixa etária, que triplicaram nesse período. Foram de 28 para 85. Nos últimos anos, o governo Jair Bolsonaro tem flexibilizado o acesso a armas de fogo para civis, sob o argumento de ampliar as oportunidades de legítima defesa aos cidadãos. Especialistas criticam a política e apontam riscos de aumento da mortalidade com mais armas em circulação.
Entre as crianças de até nove anos mortas de forma violenta, 44% eram brancas; 33% eram meninas. Do total, 40% morreram dentro de casa; quase metade (46%) perdeu a vida por causa do uso de arma de fogo; e 28% pelo uso de armas brancas ou agressão física.
Meninos negros lideram números de vítimas jovens de homicídio
Em todas as idades, as principais vítimas de mortes violentas são os meninos negros. O perfil, no entanto, se intensifica ainda mais na adolescência. Para os meninos, a faixa etária dos 10 aos 14 anos marca a transição da violência doméstica para a prevalência da violência urbana. Nesta idade, começam a predominar mortes fora de casa, por arma de fogo e por autores desconhecidos.
Quando os adolescentes chegam à faixa etária de 15 a 19 anos, essa transição no perfil da violência letal está consolidada. As mortes violentas têm alvo específico: mais de 90% das vítimas são meninos, e 80% são negros. Esses meninos, pretos e pardos, morrem fora de casa, por armas de fogo. Em uma proporção significativa, são vítimas de intervenção policial.
Em 2020, nos 24 Estados em que há dados (exceções são Bahia, Distrito Federal e Goiás), um total de 787 óbitos de crianças e adolescentes de 10 a 19 anos foram identificadas como "Mortes Decorrentes de Intervenção Policial". Esse número representa 15% do total das mortes violentas intencionais nessa faixa etária, e indica uma média de mais de duas mortes por dia no País.
Violência sexual
A violência sexual é um crime que acontece prioritariamente na infância e no início da adolescência. Por causa de problemas com os dados de 2016, a análise desses registros refere-se ao período entre 2017 e 2020. Nesses quatro anos, foram registrados 179.277 casos de estupro ou estupro de vulnerável com vítimas de até 19 anos. É uma média de quase 45 mil casos por ano. Crianças de até 10 anos representam 62 mil das vítimas nesses quatro anos - ou seja, um terço do total.
A maioria das vítimas de violência sexual é menina - quase 80%. Para elas, um número muito alto de casos envolve vítimas entre 10 e 14 anos de idade, sendo 13 anos a idade mais frequente. Para os meninos, o crime se concentra na infância, especialmente entre 3 e 9 anos de idade. A maioria dos casos de violência sexual contra meninas e meninos ocorre na residência da vítima. Para os casos em que há informações sobre a autoria dos crimes, 86% dos autores eram conhecidos.
De acordo com especialistas, a pandemia representou um risco ainda maior para esse tipo de crime. Com as crianças longe da escola e em um convívio social mais restrito, diminuem as chances de que sejam notados os sinais de abuso e o crime, denunciado.
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