Uma pesquisa com servidores que trabalham com adolescentes infratores no Brasil revelou que a maioria desses profissionais frequentemente ouve relatos de jovens que dizem estar sob ameaça de morte ou sofrendo algum tipo de violência. Segundo o estudo, os menores de idade apontam como autores dessas ameaças principalmente membros de gangues e facções criminosas, mas também milicianos e policiais.
Entre 2019 e março de 2020, foram entrevistados mais de 3 mil profissionais, entre juízes, promotores, defensores públicos e servidores que trabalham com medidas socioeducativas. Eles responderam sobre capacitação profissional, estrutura de trabalho, financiamento e o contexto social dos menores envolvidos com a violência, entre outros temas.
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Restrição de liberdade é eficaz contra reincidência entre menores infratoresPaís terá ação especial para menores infratoresSó 2 em cada 5 menores infratores alegam motivação econômica para cometer delitoSegundo a pesquisa, 71% dos defensores públicos entrevistados afirmam serem frequentes os relatos de adolescentes que dizem estar sob ameaças de morte ou sofrendo outros tipos de violência — 61% dos promotores e 50% dos juízes também afirmam que esses relatos são constantes nas oitivas.
Os adolescentes apontam como autores das ameaças e agressões principalmente membros de gangues e facções criminosas, mas também, em menor grau, milicianos e policiais civis e militares. Entre as formas de violência apontadas pelos jovens estão principalmente agressões físicas, verbais e torturas impostas por membros de gangues e facções criminosas, abordagens policiais violentas, agressões em ambiente escolar e violência doméstica.
De acordo com a pesquisa, 88% dos defensores públicos dizem ouvir relatos de violência policial contra os adolescentes infratores antes mesmo do ato infracional cometido por eles — 70% dos promotores e 65% dos juízes concordam.
Contexto de violência
O estudo ressalta o cenário de violência e criminalidade envolvendo uma parcela da juventude no país. Entre 2000 e 2019, por volta de 444 mil pessoas entre 15 e 29 anos foram assassinadas com armas de fogo no Brasil, segundo dados do Sistema Único de Saúde (SUS) compilados pelo Atlas da Violência, publicação anual do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Quando um adolescente é preso por algum ato infracional, como furto, tráfico de drogas ou homicídio, ele necessariamente passa por oitivas informais com um promotor e um defensor. Depois, é levado a uma audiência com um juiz, que determinará alguma medida a ser cumprida, como internação ou semiliberdade.
Nessas sessões, o menor infrator normalmente conta sua história de vida, contexto familiar, escolaridade e por que cometeu o ato que causou sua prisão.
Já 66% dos defensores, 81% dos promotores e 72% dos juízes afirmam que ouvem relatos de ameaças e violências envolvendo conflitos no território de origem dos adolescentes.
"A sociedade costuma enxergar o adolescente que pratica o ilícito como uma pessoa ruim, violenta, que nasceu para o crime. Mas, na verdade, esse adolescente já estava inserido em um contexto de violência antes do ato infracional, e essa violência afeta a vida dele completamente", diz Cibelle Bueno, gerente de projetos da ONG Visão Mundial e uma das autoras do relatório.
"Esse adolescente, normalmente muito pobre, está acostumado com a violência na comunidade de origem. Quando chega à Justiça por algum ato ilícito recebe uma punição. De um lado ele é ameaçado; do outro, é uma ameaça à sociedade. Se isso já é ruim na cabeça de um adulto, imagina para um adolescente", diz Welinton Pereira, diretor de relações institucionais da Visão Mundial.
Desde 2007, o Brasil possui o Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte (Ppcaam), que chega a transferir de Estado famílias de adolescentes sob ameaça. Para ingressar no programa, a família deve procurar o Conselho Tutelar, o Ministério Público local ou o Poder Judiciário.
'Primeiro sinal do crime'
Menores de 18 anos podem ficar internados no máximo três anos, ou cumprir medidas em liberdade ou semiliberdade. O tempo exato de cada punição é determinado pela gravidade do ato infracional, e também por uma análise psicológica e social feita por servidores, promotores e juízes.
Segundo o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase), 46 mil menores de idade em conflito com a lei foram atendidos pelo órgão no ano passado. Ao todo, 59% dos adolescentes eram negros e 22%, brancos — no geral, a população brasileira se divide entre 53,% de negros e 45,4% de brancos.
Das 5 mil pessoas que cumpriam medidas socioeducativas no Estado de São Paulo no início deste ano, por exemplo, 49% tinham cometido infrações relacionadas ao tráfico de drogas — roubos representavam 37%; furtos 3% e homicídios, 2,6%. Os dados são da Fundação Casa, órgão que aplica medidas socioeducativas em São Paulo.
"O abandono da escola é o primeiro sinal de que esse adolescente pode entrar na criminalidade. Muitas vezes, a escola não procura a família nem aciona qualquer serviço de assistência social", diz Cibele Bueno, da Visão Mundial, que por anos trabalhou com adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas.
"Ele começa a se envolver com o crime na comunidade. Os motivos são vários: quer acesso a dinheiro, a bens de consumo, poder e até pertencer a um grupo, ser reconhecido naquele espaço. Começa levando um pacotinho de um lado para o outro, ganha dinheiro, tem acesso a drogas e armas. Quando quer sair, não consegue porque a facção não permite mais, às vezes é ameaçado", diz.
Essa trajetória de abandono escolar foi demonstrada em um recente estudo sobre o perfil dos adolescentes internados em Salvador, produzido pela Defensoria Pública do Estado.
Segundo a pesquisa, 71,8% dos 159 menores internados em alas masculinas das Comunidades de Atendimento Socioeducativo (Cases) em outubro de 2019 não estavam matriculados na escola. Já 87,8% não tinham completado o ensino fundamental.
"Em Salvador, vários adolescentes param de ir à escola porque estudam em bairros controlados por uma quadrilha rival daquela que domina onde eles moram. Só de viver ali eles já são estigmatizados como membros de um grupo, mesmo que não sejam. Para não serem vítimas, muitos param de estudar e entram para o crime", diz Bruno Moura, defensor público da Bahia, que diariamente participa de audiências em uma vara da infância de Salvador.
"Desde pequeno esse jovem conhece o signo e a linguagem da violência. Ele é vítima em casa, no bairro, da polícia. Quando chega à vida adulta, existe grandes chances de ele reproduzir essa violência, pois ele foi criado nela", diz Moura.
Conflito de facções
O juiz José Dantas, da 1ª vara da infância e juventude de Natal, também convive todos os dias com relatos de violência durante suas audiências com jovens infratores do Rio Grande do Norte.
"É comum ouvir adolescentes dizendo que estão sob ameaça, principalmente das facções. Onde há ausência do poder público o poder paralelo assume. O crime dá o que o Estado não oferece: dinheiro, visibilidade, poder", diz Dantas à BBC News Brasil, por telefone.
"Tem rapaz que com 16 anos já comanda território, administra o tráfico. Nessa vida ele cria inimigos, rivais, se envolve em conflitos. Muitos são assassinados. Mas eles também são usados pelas facções, porque, também na criminalidade, existe a ideia de que menor de idade não fica preso. E isso não é verdade, muitos são internados", diz.
Nas últimas décadas, o Rio Grande do Norte se tornou um exemplo negativo quando o assunto é violência contra jovens.
Em 2016, os potiguares entre 15 e 29 anos eram os que mais morriam em crimes violentos no país: a taxa chegou a 152 mortes para cada 100 mil habitantes, alta de 482% desde 2006, segundo o Atlas da Violência. Já em 2019, esse número caiu para 85. O Amapá atualmente lidera o ranking com uma taxa de 101 assassinatos de jovens por grupo de 100 mil - São Paulo é o melhor nesse quesito, com 12,5.
Um dos fatores que explicam esse alto índice do Rio Grande do Norte é o crescimento do poder de duas facções criminosas que controlam e disputam o tráfico de drogas na região, o Sindicato do Crime e o Primeiro Comando da Capital (PCC). Em 2017, uma briga entre membros das duas quadrilhas terminou em um massacre de 26 detentos no presídio de Alcaçuz, região metropolitana de Natal.
"Adolescentes chegam às audiências dizendo pertencer a um grupo ou outro. Esses grupos se aproveitam da fragilidade social das comunidades. Muitos jovens não têm pais, não estudam, moram em bairros com poucos recursos, em famílias desestruturadas. Eles são facilmente cooptados pelo crime", diz Dantas.
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