No início do mês passado, o padre Anderson Marçal, pároco da Paróquia São Judas Tadeu, em Rio Branco (AC), recebeu uma ligação que o deixou preocupado. Uma fiel da igreja contou que havia recebido a visita de dois jovens membros do grupo católico Arautos do Evangelho que citaram o nome de Anderson e de outro pároco e estavam pedindo dinheiro para custear seminaristas.
Em seguida, outras famílias da comunidade relataram ter recebido visitas e até enviaram fotos no grupo de Whatsapp da paróquia.Criado no Brasil pelo monsenhor João Clá Dias, o grupo católico Arautos do Evangelho se espalhou por mais de 70 países pregando o tradicionalismo religioso. Seus membros - que incluem leigos e sacerdotes - vivem juntos em imóveis da entidade, incluindo um edifício que imita um castelo na Serra da Cantareira, em São Paulo.
Com cerca de 3 mil membros no Brasil, a entidade faz evangelização e promove eventos artísticos religiosos. No início de dezembro, o coral dos Arautos se apresentou para o presidente Jair Bolsonaro durante a cantata de Natal realizada no Palácio do Planalto.
O problema com a visita feita por eles às famílias da paróquia São Judas Tadeu é que o padre Anderson não só não tinha qualquer relação com os Arautos do Evangelho como não conhecia os jovens que estavam usando seu nome para arrecadar dinheiro.
"Eles estavam usando o nome de dois padres que não os conheciam", conta o padre, que imediatamente levou o problema ao bispo de Rio Branco.
Ao verificar que os jovens realmente eram membros do grupo, o bispo Joaquim Pertiñez enviou um comunicado aos Arautos manifestando "total rejeição a qualquer tipo de trabalho" do grupo em sua "jurisdição eclesiástica".
"Não está certo e nunca aprovamos que tirem dinheiro de nosso povo humilde, pobre e sofrido para os membros dos Arautos do Evangelho banquetear em luxuosos e suntuosos palácios como aparecem nas fotos que foram publicadas na revista da instituição", diz o bispo de Rio Branco. "Esse não é o evangelho que conhecemos, pregamos e transmitimos."
O atrito dos Arautos com outro setor da Igreja Católica não é um episódio isolado. Outros bispos - como os das dioceses de Ituiutaba (MG) e São Mateus (ES) - já emitiram comunicados parecidos, rejeitando a atuação do grupo em suas dioceses.
Mas os atritos não são apenas locais. Os Arautos do Evangelho tiveram atritos com o próprio Vaticano durante o pontificado do papa Francisco, que adotou uma postura menos conservadora no comando da Igreja.
Em 2017, após denúncias feitas por ex-membros à Santa Sé, uma investigação foi aberta pelo Vaticano e João Clá Dias renunciou ao comando do grupo.
Em 2019, um decreto do Vaticano os colocou sob tutela direta do cardeal Raymundo Damasceno Assis, nomeado como interventor pontifício.
Na época, os Arautos emitiram um comunicado dizendo que, embora reverenciem o cardeal como bispo da Igreja, não aceitavam sua autoridade como comissário pois o decreto papal seria "inválido e ilegal" por "contradizer normas do direito canônico" e por causa de "erros fundamentais nele contidos".
Em setembro desde ano, a Igreja ordenou que todos os menores nas escolas administradas pelo grupo fossem devolvidos a suas famílias após o fim do ano letivo com "o objetivo de prevenir qualquer situação que possa favorecer possíveis abusos de consciência e plágio contra menores".
À BBC News Brasil os Arautos do Evangelho disseram que "as visitas recentemente realizadas na Diocese de Rio Branco foram de caráter evangelizador, restritas aos membros solidários da Associação que residem na diocese", mas não explicaram por que o nome dos párocos foi usado sem seu consentimento durante as visitas.
A entidade disse também que a situação já foi resolvida com o bispo de Rio Branco, que "reconheceu a licitude civil e canônica da presença dos Arautos na região".
Os arautos afirmaram também que "toda escola ou qualquer outra organização está sujeita a reclamações" e que "as escolas privadas inspiradas no carisma dos Arautos as recebem e as analisam sempre, com total liberdade de consciência, buscando melhorar seus serviços".
Tradição, Família e Propriedade
O Arautos do Evangelho se tornaram oficialmente uma associação de fiéis em 2001, mas suas origens remontam ao final dos anos 1990, após a morte de Plínio Corrêa de Oliveira, fundador da TFP (Sociedade de Defesa da Tradição, Família e Propriedade), em 1995.
A TFP foi uma organização civil tradicionalista de extrema-direita, fundada nos anos 1960 e conhecida por apoiar a ditadura militar.
Após a morte de Plínio Corrêa de Oliveira, a TFP se dividiu em duas correntes, uma ligada a um grupo de fundadores da TFP que eventualmente formaram o Instituto Plinio Corrêa de Oliveira e outra liderada por João S. Clá Dias, que ficou com o nome, as propriedades, o brasão e os direitos da associação no Brasil.
Logo em seguida, Clá Dias começou a organizar os Arautos do Evangelho, que foram oficializados em 2001.
Aos poucos, a instituição cresceu e se espalhou por mais de 70 países. Seu líder criou outras entidades associadas, como a Associação Cultural Nossa Senhora de Fátima, a Associação Católica Rainha das Virgens e a Sociedade Clerical Virgo Flos Carmeli.
Em 2009, o papa Bento 16 concedeu a aprovação pontifícia aos Arautos e deu o título de "monsenhor" ao fundador.
Defensor de valores conservadores, o grupo se posiciona contra o que chamam de "revolução" (o avanço de ideias progressistas) dentro da Igreja.
Apesar dos Arautos terem abandonado muitos símbolos e práticas da TFP, Plínio Corrêa continuou a ser um nome reverenciado na instituição.
Fotos e informações sobre Plínio e sua mãe estão presentes no material didático das escolas do grupo e até nas escrivaninhas e paredes dos aposentos dos estudantes.
Considerado "varão católico" pelo grupo, Plínio ganhou uma biografia em cinco volumes publicada pela editora da entidade, O Dom de Sabedoria na Mente, Vida e Obra de Plínio Corrêa de Oliveira, escrita por João Clá Dias.
Na década de 2010, durante o pontificado do papa Francisco, a relação Arautos do Evangelho com a Santa Sé sofreu desgastes até se transformar em um conflito público.
Intervenção da Santa Sé
Motivada por denúncias e reclamações de fiéis católicos, o Vaticano iniciou em 2017 uma investigação sobre as práticas da ordem, incluindo a análise de denúncias de "deficiências no estilo de governo, na vida dos membros do Conselho, na pastoral vocacional, na formação de novas vocações, na administração", em palavras da própria Santa Sé.
As denúncias feitas pelos fiéis incluíam relatos de assédio sexual, abuso psicológico, alienação de membros de suas famílias, humilhações, práticas de exorcismos irregulares, recebimento de doações sem autorização e culto à personalidade dos fundadores.
A investigação começou pouco depois do vazamento de dois vídeos de supostos exorcismos feitos pelos arautos com práticas heterodoxas, não aprovadas pela Igreja.
Em um deles um homem dizia que o papa Francisco era um emissário do demônio e profetizava sua morte. "Ele vai escorregar e vai cair. Vai bater a cabeça. Mas ainda falta um pouco. Vai ser no Vaticano. E virá outro papa. E será bom", dizia o homem, observado por membros dos Arautos, incluindo João S. Clá Dias, que riem das palavras.
No outro vídeo, uma jovem gritava e era agredida com tapas enquanto passava por um suposto exorcismo.
Os Arautos conseguiram na Justiça tirar os vídeos de circulação alegando desrespeito às leis de direito autoral. A entidade afirmou na época que os vídeos eram confidenciais, que foram divulgados por um "antigo desafeto" e que foram tirados de contexto como parte de uma "campanha de difamação".
O grupo também afirmou que costuma ser procurado por fiéis para lidar com situações que supostamente são causadas por espíritos malignos e que não negam assistência.
"No caso específico da luta contra o demônio, é perfeitamente compreensível que os sacerdotes arautos ajam com naturalidade frente a relatos que causariam espanto a muitas pessoas leigas, pois estão mais familiarizados com esse tipo de situação", disse a entidade em um comunicado.
Procurados pela BBC News Brasil, os Arautos disseram que "nenhuma pessoa criticou o papa naquela reunião".
"Em momento algum, mons. João Clá ou qualquer outro participante da reunião concordou com críticas feitas pela suposta entidade demoníaca, nem tampouco proferiu qualquer crítica ao papa, ao qual se deve submissão e veneração", diz a entidade, acrescentando que "a liberdade religiosa para acreditar na existência de fenômenos espirituais é garantida pela Constituição Federal."
Após o Vaticano iniciar a investigação, João Clá Dias renunciou ao comando oficial do grupo, mas continuou sendo um nome importante na organização.
Em 2019, o avanço das investigações levou a Santa Sé a nomear o cardeal Raymundo Damasceno Assis, ex-lider da CNBB (Confederação Nacional dos Bispos do Brasil), como interventor para "guiar" os Arautos do Evangelho.
O Vaticano destacou que a decisão "não deve ser vista como uma punição", mas como uma iniciativa que visa "o bem da instituição" e a correção de problemas existentes.
A resposta inicial da instituição foi de não aceitação da intervenção, dizendo que o documento continha erros como a definição da associação como pública, sendo que ela é privada.
"Nós lhes reverenciamos como bispos da Igreja de Nosso Senhor Jesus Cristo, e como tais ambos são objeto de nossa consideração, mas devemos declarar que não reconhecemos Vossa Eminência enquanto 'comissário' da Associação Privada de Fiéis Arautos do Evangelho, da qual eu sou o presidente legitimamente eleito", disse o então presidente do grupo, Felipe Eugênio Lecaros Concha, em um comunicado.
Após a contestação dos Arautos, o Vaticano emitiu um novo documento corrigindo a descrição da entidade como associação privada e reiterando que a nomeação do interventor foi aprovada diretamente pelo papa.
Procurados pela BBC News Brasil, os Arautos do Evangelho disseram que o Vaticano "retificou o decreto" a seu pedido e que "nunca houve recusa dos Arautos ao Cardeal Raymundo Damasceno, um dos mais destacados eclesiásticos brasileiros".
Prevenção de abusos
Em meados de 2021, o Vaticano ordenou o retorno de todos menores de idade das escolas administradas pelos Arautos para suas famílias. Segundo o documento de uma das congregações da Santa Sé, nesses locais se pratica um "tipo de disciplina excessivamente rígida".
Em uma decisão da Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica de junho, a Igreja tomou a decisão de que todos os "menores de idade que residam em casas, escolas" ou nas sociedades de vida apostólica da instituição deveriam ser "devolvidos às suas famílias".
A decisão foi mantida em sigilo até setembro, quando foi revelada pelo jornal italiano de notícias católicas Adista.
A ordem tem o objetivo de proteger os jovens de "qualquer situação que possa favorecer possíveis abusos de consciência e subjugação de menores", segundo o documento assinado pelo cardeal brasileiro João Braz de Aviz, prefeito da congregação.
Liderado por Braz de Aviz, o braço da Santa Sé tem promovido uma grande reforma em instituições de fiéis consagrados.
De acordo com o documento, a decisão em relação aos Arautos foi tomada "à luz das informações recebidas pela Sé Apostólica, tendo em conta as numerosas comunicações enviadas pelos pais das crianças e jovens inseridos na órbita da Associação Arautos do Evangelho, e que reclamam que as famílias são, na maioria das vezes, excluídas da vida dos seus filhos e que o contato com os pais não é suficientemente garantido".
Os Arautos entraram com um recurso contra o decreto - que consideraram uma "aberração jurídica eclesiástica" - no âmbito canônico.
A entidade disse, na época, que nenhuma autoridade eclesiástica poderia interferir em instituições privadas de ensino - o que caberia apenas às Secretarias de Educação. Afirmou também que a decisão de onde manter as crianças caberia somente aos pais.
À BBC News Brasil, os Arautos disseram que "não administram, nem nunca administraram nenhum estabelecimento de ensino no Brasil". Tecnicamente as escolas são administradas por uma associação privada com outro CNPJ, chamada Instituto Educacional Arautos do Evangelho.
Os Arautos afirmaram também que "toda escola ou qualquer outra organização está sujeita a reclamações" e que "as escolas privadas inspiradas no carisma dos Arautos as recebem e as analisam sempre, com total liberdade de consciência, buscando melhorar seus serviços".
"A Associação de Mães e Pais de Alunos dos Arautos do Evangelho entregou ao cardeal Raymundo Damasceno Assis, em outubro deste ano de 2021, um abaixo-assinado de TODOS os pais cujos filhos atualmente estudam nestas escolas, apoiando as atividades, métodos pedagógicos e o resultado educacional obtido", diz a entidade em nota.
'Culto à personalidade'
Em um depoimento enviado ao Vaticano e publicado pela revista Veja em 2019, um ex-membro dos Arautos conta que o grupo tem um "apego excessivo" às figuras de João Clá Dias e Plínio Corrêa de Oliveira, a ponto de itens tocados pelo monsenhor, como copos e guardanapos, se tornarem "relíquias" cobiçadas pelos membros.
O depoimento diz ainda que os jovens recrutados são incentivados a se afastar de suas famílias e amigos.
Um ex-membro dos Arautos, que chegou a viver com a comunidade no interior de São Paulo, disse à BBC News Brasil que as práticas relatadas no depoimento de fato acontecem.
"O culto à personalidade do monsenhor João Clá Dias é uma coisa tão forte que chega a ser uma heresia", diz ele, que pede para não ser identificado.
Hoje adulto, ele diz que foi "recrutado" pelo grupo quando ainda era menor de idade e que no início "se encantou" com as roupas, os rituais e as atividades musicais promovidas.
"No começo tudo era muito atraente. Só depois comecei a perceber que as coisas que aconteciam não eram normais e não eram aprovadas pela Igreja", diz ele, que continua sendo católico.
A prática de um suposto culto às figuras de Plínio e João Clá Dias também foi descrita pelo pesquisador italiano Massimo Introvigne, que estudou as ramificações da TFP no Brasil.
"Há muitas evidências que, dentro do movimento dos Arautos do Evangelho há uma espécie de seita secreta que cultua uma trindade composta por Plínio Corrêa de Oliveira, sua mãe, Dona Lucília, e pelo monsenhor Clá Dias", escreveu o sociólogo no artigo acadêmico Tradição Família e Propriedade e os Arautos do Evangelho, publicado em 2016.
Procurada pela BBC News Brasil, a entidade afirmou que "nenhum pai de aluno registrou qualquer reclamação" sobre veneração excessiva. "Contudo, se houver opinião diversa, isto é sempre bem recebido, tendo em vista o aprimoramento individual e institucional";.
"Quanto a ex-membros e outros, não temos como subsidiar o porquê de tais acusações, pois estas são inverídicas", disse a entidade em nota.
"Mons. João Clá é respeitado e querido por ser o fundador dos Arautos. Dr. Plinio Corrêa de Oliveira é para os Arautos um exemplo de leigo católico. Cabe exclusivamente à Igreja determinar sua beatificação ou canonização", diz a entidade. "Respeito e veneração nunca foram proibidos na Igreja."
Em outros momentos, a ordem negou denúncias de abuso, disse que jamais exerceu práticas desaprovadas pelo Vaticano e que tem sido vítima de uma campanha de difamação e perseguição religiosa.
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