Prova da dissonância entre as partes é que o MSC Splendida, com atividades interrompidas e parado no Porto de Santos, deve zarpar na noite deste domingo (2/1) para nova viagem. Nele e no Costa Diadema, que chegou a parar em Salvador (BA), foram detectados surtos da doença - com direito a transmissão comunitária no segundo.
Mais cedo, no Rio de Janeiro (RJ), chegou o Preziosa, outro navio da MSC, vindo de Armação dos Búzios, no interior do estado. A Anvisa e a secretaria de Saúde da capital fluminense calculam a presença de ao menos 20 contaminados no interior da embarcação. A disseminação do vírus nos navios tem gerado apreensão aos que planejaram, por muito tempo, as viagens marítimas. A rescisão de contrato é um dos caminhos apontados por especialistas.
No MSC Splendida, a Anvisa apontou a presença de 51 tripulantes e 27 passageiros. Os 132 contactantes foram desembarcados em Santos. Na sexta-feira (31/12), quando emitiu documento aconselhando a interrupção dos itinerários, a autarquia calculou 170 doentes entre os 38.212 profissionais do alto mar embarcados na costa nacional desde o início da temporada; havia, ainda, 131 infectados na lista de 83.327 passageiros.
A situação mais grave está no interior do Costa Diadema, Quando atracou em terras soteropolitanas, há dois dias, 68 testes positivos foram confirmados. A Anvisa classifica o cenário epidemiológico das embarcações em quatro níveis; quanto mais alto o risco, mais alto o nível. O Diadema está no último patamar; os outros, no nível três.
No Costa Fascinosa, previsto para chegar ao Rio de Janeiro no dia 6, havia quatro casos de coronavírus até o dia 31. As contaminações, até aquele momento, estavam restritas aos tripulantes. Há infectados, também, no MSC Seaside: dados do último dia de 2021 apontavam 45 pessoas isoladas, entre tripulantes e passageiros.
Em outubro, uma portaria assinada pelas pastas de Saúde, Casa Civil, Justiça e Segurança Pública e Infraestrutura autorizou o retorno dos cruzeiros para esta temporada, sob condicionantes como avaliações periódicas do cenário epidemiológico e planos locais de assistência em saúde após o desembarque dos passageiros. O Ministério da Saúde prometeu analisar as "medidas cabíveis" possíveis de serem tomadas. Ao recomendar a suspensão, a Anvisa pediu que a interrupção seja seguida "até que haja mais dados disponíveis para avaliação do cenário epidemiológico".
Por causa da incerteza, o Código de Defesa do Consumidor dá razão aos que cogitam cancelar as férias em alto mar. "O consumidor tem o direito de rescindir o contrato, sobretudo em uma situação dessas, em que a própria Anvisa está optando pela suspensão do serviço", diz ao Estado de Minas a advogada Luciana Atheniense, especialista em Direito do Turismo.
Otimismo é 'vacina' contra nova frustração
A mineira Ana Lúcia Schmitz é veterana em cruzeiros, e já rodou o mundo a bordo dos imponentes navios. Para este ano, a meta é ir do Rio a Gênova, na Itália, em março. Agora, a tradicional ansiedade pré-viagem ganhou novos contornos."Estamos esperando, na expectativa. Com esses cancelamentos, a gente não sabe [se será possível embarcar]", conta ela.
Em março de 2020, o início da pandemia frustrou, a poucos dias do embarque, os planos dela de passear do Rio a Barcelona, na Espanha, foram adiados. O itinerário foi invertido e, a saída, agendada para o porto catalão, também não deu certo.
A MSC, então, ofereceu uma carta de crédito a Ana Lúcia e ao marido. Se houver novo adiamento, ela pensa em aceitar novo documento do tipo, mas sabe dos riscos. "Cada vez que se adia, fica mais caro, porque é tudo em dólar. Como também pode, no fim do ano, o dólar ter uma leve queda e, aí, termos até mesmo um crédito [adicional]. É tudo um jogo. Vale a sorte".
Segundo Luciana Atheniense, a oferta de cartas de crédito não pode ser a única solução dada pelas operadoras de cruzeiros. "A negativa de rescisão contratual com a devolução dos valores quitados, vinculada à pandemia de COVID-19, contraria os direitos básicos do consumidor", observa.
"O receio dos passageiros não se limita apenas ao perigo de contrair o vírus, mas também à insegurança de serem surpreendidos com a necessidade de permanecerem confinados dentro do navio por tempo indeterminado, correndo risco iminente de serem contaminados por outros passageiros", completa a especialista.
Se conseguir viajar, Ana Lúcia vai embarcar no famoso MSC Seaside. Segundo a empresa, o calendário de cruzeiros da embarcação está mantido por ora. Conforme a armadora, todos os hóspedes a partir de 12 anos precisam apresentar comprovante de término do esquema vacinal. Passageiros a partir de 2 anos devem mostrar, ainda, teste RT-PCR negativo, feito até 72 horas do embarque, ou exame de antígenos feito no dia anterior. Um questionárrio de saúde também é preenchido. Ainda de acordo com a MSC, a tripulação é semanalmente testada.
Riscos sobem de patamar
Ao recomendar a suspensão dos cruzeiros, a Anvisa lembrou que o Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos Estados Unidos atualizou, de três para quatro, o número de níveis que controlam o risco para COVID-19 em viagens. "Isso reflete o aumento de casos a bordo de navios de cruzeiro desde a identificação da variante Ômicron. Em análise inicial, o cenário pode estar sendo reproduzido nas embarcações que navegam em território nacional", lê-se em trecho da nota técnica da agência reguladora brasileira.
A Associação Brasileira de Cruzeiros Marítimos (CLIA) discordou da decisão. Em nota, a entidade afirma que "o setor de cruzeiros recebeu com surpresa a recomendação da Anvisa de suspensão provisória da temporada de navios, tendo em vista que os menos de 400 casos positivos identificados a bordo representam cerca de 0,3%, ou seja, uma pequena minoria dos 130 mil passageiros e tripulantes embarcados desde o início da atual temporada, em novembro.
Esses casos, em sua grande maioria assintomáticos ou com sintomas leves, foram identificados, isolados e desembarcados, conforme o protocolo vigente, assim como seus contatos próximos, representando pouca ou nenhuma carga para os recursos médicos de bordo ou em terra."
Para o médico sanitarista Sérgio Zanetta, professor de Saúde Pública e Epidemiologia do Centro Universitário São Camilo, de São Paulo, a Anvisa demorou a sugerir a proibição de cruzeiros, classificados por ele como "armadilhas" para disseminar o vírus.
"Tirando os conveses, que são externos, o navio é inteiramente refrigerado. É um ar que recircula. Se eu tiver uma pessoa infectada, a chance de, através de aerossóis, disseminar a infecção, é muito grande", explicou, ontem, à "CNN Brasil".
Segundo ele, os problemas já eram "anunciados". "Mesmo que eu solicite comprovantes de vacinação e faça exames prévios, há algumas falhas possíveis".
A CLIA, por seu turno, afirma que o ar não recircula nos navios. "Faz parte dos protocolos o ar fresco sem recirculação, desinfecção e higienização constantes, com utilização de filtros de ar Merv13 e Hepa".