Paraíso das fake news, o Telegram passou de um simples aplicativo de troca de mensagens para um dos maiores vilões da Justiça brasileira. A disseminação de conteúdo falso, violento e, muitas vezes, criminosos, é rotina na plataforma. A equipe de reportagem passou duas semanas infiltrada no submundo de links secretos do aplicativo e descobriu uma verdadeira “terra sem lei”
A rede social, nascida na Rússia, e sediada em Dubai, nos Emirados Árabes, ainda está longe do gigante WhatsApp. No entanto, seu crescimento tem causado dor de cabeça para as autoridades brasileiras. Preocupados com o caos que o aplicativo vai causar no pleito deste ano, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) avalia formas de controlar o conteúdo do aplicativo, mas já admitiu não ter controle, pois a empresa não possui representação no Brasil.
Atualmente, o Telegram está instalado em 53% dos smartphones no país, taxa que era de apenas 15% em 2018, segundo levantamento site MobileTime em parceria com a empresa de pesquisas online Opinion Box. A rede permite conjuntos com 200 mil pessoas, além de compartilhamento irrestrito.
Em poucas horas navegando, é possível encontrar grupos de vendas de armas, drogas, venda de CPF e compartilhamento de pornografia infantil. Apologia ao nazismo, comércio ilegal de imagens e desinformações sobre a vacina contra a COVID-19 são um show a parte – mais de 50 mil grupos foram formados com essas finalidades na plataforma.
Ainda é possível encontrar canais de venda de notas de real falsas, em que criminosos fazem negociação diretamente com os inscritos; canais de vendas de drogas; venda de conteúdo pornográfico (inclusive de menores de idade); e centenas de grupos destinados à disseminação de conteúdo falso.
A comunidade de CACs (caçadores, atiradores e colecionadores) e simpatizantes de armas é outro público assíduo de grupos do Telegram. Em espaços que chegam a dezenas de milhares de pessoas, revólveres, fuzis, munição e acessórios bélicos são comercializados sem regulamentação de órgãos públicos. Há ainda espaço em que os administradores comercializam dados pessoais por meio de programas automatizados.
Para driblar o pouco de censura, os usuários compartilham “truques”. O termo “CP” (child pornography), por exemplo, aparece geralmente simbolizado por emojis; a palavra “vacina” é escrita de ponta-cabeça; e “nazi” aparece, geralmente, com tipografias góticas.
Facilidade O cientista de dados Dionísio Silva, da Total Florida International (TFI) no Brasil, explica porque o Telegram é tão atraente para esse público. “Um dos principais trunfos, sua criptografia, é vista com bons olhos pelos criminosos, já que eles enxergam nisso uma menor chance das conversas estarem sendo monitoradas por autoridades. Por fim, o Telegram também é bem mais fácil e conveniente de ser usado do que a ‘dark web’”, ressalta.
A ‘dark web’ a qual o especialista se refere, assim como a deep web (internet profunda em tradução livre), são as camadas profundas da internet que são indisponíveis para usuários comuns. Trata-se de uma rede muito maior do que a web convencional, onde todo o conteúdo é criptografado e, portanto, não pode ser rastreado. No entanto, para acessá-los, é preciso de navegadores específicos, ao contrário do Telegram que está disponível para qualquer celular.
O professor de estudos brasileiros da Universidade de Oklahoma (EUA) Fabio de Sá e Silva aponta a necessidade do país discutir temas como esse. “O Brasil está muito atrasado na discussão sobre regulação de redes sociais, como o debate recente sobre a identificação de perfis do Twitter deixou claro”, aponta. “Até mesmo nos EUA, onde prevalece uma filosofia de não intrusão do Estado em companhias, as grandes plataformas estão sendo forçadas a prestar contas e mudar suas políticas”, aponta Silva.
Dificuldade O professor Rafael Rabelo Nunes, dos Departamentos de Administração e Engenharia Elétrica da Universidade de Brasília (UnB), explica a dificuldade dos aplicativos em filtrar esses conteúdos diariamente. “Eu não conheço a estrutura interna do Telegram. Mas será que ele também não está tendo algum tipo de dificuldade para acompanhar? Ou até que ponto também eles têm acesso ao conteúdo que tramita na plataforma?”, questiona.
E quem pensa que o Telegram é a única alternativa para os extremistas, está muito enganado. Nos grupos, os usuários já se preparam para migrar para o Signal ou Gettr, em caso de censura ao aplicativo. “Desde que houve a mudança da política de privacidade do WhatsApp, tem havido uma procura maior por outros aplicativos. Quanto mais se discutir sobre os aspectos de proteção de dados, podemos ter certeza que cada vez mais as pessoas vão procurar outras plataformas”, reitera Nunes.
Sem controle No início de janeiro, na Alemanha, a ministra do Interior, Nancy Faeser, afirmou que o governo cogita acabar com Telegram no país por conta de discursos de ódio e fake news relacionadas à eficiência das vacinas contra a COVID-19. No Brasil, nenhuma providência foi tomada. Procurado, o TSE afirmou que tem feito diversas tentativas de contato com o Telegram, mas ainda segue sem resposta. A dificuldade seria por causa da falta de escritório da empresa no Brasil.
“O Tribunal entrou em contato com a plataforma, por algumas vezes, e após não ser bem-sucedido nas tentativas informais, encaminhou um ofício com o objetivo de formalizar uma cooperação que vise combater à desinformação”, informou. O órgão ainda afirmou que tem feito parcerias com entidades, mídias sociais e plataformas dentro do Programa de Enfrentamento à Desinformação.
Na avaliação da advogada criminalista Hanna Gomes, a lei brasileira está muito aquém do que a realidade precisa quando se trata de controle das plataformas virtuais. “O Brasil demorou para estabelecer o Marco Civil da Internet, com relação a outros países, e mesmo após 2014, não houve ainda uma integração com toda a legislação. Não há crimes específicos para combater a cibercriminalidade, incluindo a fake news”, aponta.
Gomes explica que a responsabilização de empresas virtuais ainda é um processo delicado para a legislação brasileira, pois ainda não há dispositivos específicos para regular o ambiente virtual. “Isso, combinado com a nossa Constituição, pode gerar ideia de censura em casos de bloqueios ou impedimentos ao funcionamento de plataformas de comunicação”, ressalta
Embora ainda não tenhamos uma legislação específica para o ambiente virtual, os crimes praticados pela rede mundial de computadores são previstos em lei. “Muitas situações podem ser enquadradas como estelionato, extorsão, fraude ao sistema financeiro e outras fraudes diversas, por exemplo. Assim, qualquer pessoa que se encontre cometendo crimes, mesmo no ambiente virtual, pode ser investigada, processada e punida”, explica a criminalista. Ao entrar no Brasil e estabelecer seu funcionamento, as empresas ficam sujeitas à legislação brasileira e, portanto, também podem ser responsabilizadas pela falta de controle e suspensão de mensagens e conteúdo criminoso.
Reduto de
extremistas
Com regras de funcionamento menos rígidas, o Telegram atrai extremistas banidos de redes como Facebook, Twitter e YouTube. É por meio da plataforma que o blogueiro Allan dos Santos, foragido da Justiça, se comunica diariamente com seus apoiadores. Muito ativo, ele promove ataques às instituições, critica a oposição e espalha fake news. Mais de 121 mil pessoas o acompanham na rede.
O caminhoneiro Marco Antônio Pereira Gomes, conhecido como Zé Trovão, preso desde outubro do ano passado, também se comunicava com seus seguidores, quando estava foragido no México. Ele chegou a ter 40 mil inscritos no canal oficial do Telegram, mas hoje tem apenas 17 mil.
Às vésperas do início oficial da corrida eleitoral no Brasil, os diversos candidatos já definem suas estratégias para alcançar o eleitorado. O atual presidente, Jair Bolsonaro, abraçou com entusiasmo o Telegram. Com mais de 1 milhão de inscritos, o chefe do Executivo é bastante assíduo na rede e compartilha diariamente vídeos, pronunciamentos e andamento de propostas em todas as esferas do governo. À frente dos adversários, ele se tornou o pré-candidato à Presidência da República mais influente da plataforma.
Os filhos do presidente também se comunicam por meio de seus canais. Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ) tem 92 mil inscritos; Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ) pouco mais de 69 mil; Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) 52 mil; e Jair Renan não tem nenhum grupo na rede.