Rio de Janeiro – O atípico carnaval de abril terminou, mas promete deixar obras atemporais na discografia do mais brasileiro dos ritmos musicais. Do "samba-carta" levado pela Unidos do Viradouro à densa canção feita por Carlinhos Brown para a Mocidade Independente de Padre Miguel, há vertentes para todos os gostos. A folia deste ano no Rio de Janeiro (RJ) apresentou, inclusive, uma canção destinada a Martinho da Vila, que, na verdade, é uma minibiografia em versos divididos por quatro estrofes.
E se você pensou que para fazer samba de enredo é preciso destampar cervejas e queimar uma carne, errou. Brown é prova disso, porque, para compor com os parceiros cariocas, recorreu ao WhatsApp. A troca de mensagens foi fundamental para fazer o grupo se acertar e vencer o concurso interno da Mocidade para definir, entre 11 sambas inscritos, qual deles representaria o enredo sobre o orixá Oxóssi na Marquês de Sapucaí.
Multi-instrumentista, Brown não conhecia os futuros colegas de caneta na Mocidade. Tão logo receberam a notícia de que teriam a missão de escrever sobre um tema ligado às religiões de matriz africana, um grupo de compositores, liderado por Diego Nicolau, pensou em convidar um artista de "meio de ano" para ajudar na feitura da obra. Pensaram, então, em dois nomes: Margareth Menezes e Carlinhos Brown – que, quando convidado, aceitou de pronto.
"Quem é que não conhece ‘lá vem a bateria da Mocidade Independente’? Isso é um clássico do mundo. Uma comunidade como essa é algo a se respeitar quando você recebe um chamado", disse Brown ao Estado de Minas, citando o trecho de um samba de exaltação à escola eternizado na voz de Elza Soares.
Embora Brown tenha abraçado a ideia assim que ouviu a proposta, chegar até ele não foi fácil. Nasceu, então, um verdadeiro telefone sem fio, segundo Nicolau. "Um dos compositores tinha o contato do contato da assessora dele. Queríamos muito e fomos atrás. Foi um dia especial quando veio a resposta de que ele gostaria de fazer parte."
O samba em homenagem a Oxóssi se chama "Batuque ao caçador". Por isso, além de louvar a entidade, a letra exalta grandes ritmistas da história da escola, como os mestres André – inventor das paradinhas –, Coé e Jorjão, e o cuiqueiro Quirino. "É uma escola. Vim aprender", assinalou Brown.
O adiamento em dois meses do carnaval, previsto originalmente para fevereiro, contribuiu involuntariamente para fazer os sambas grudarem na mente do público. Isso porque, com a mudança de data, muitos turistas desistiram de viajar ao Rio – como visto nos clarões presentes nas arquibancadas do setor destinado aos foliões estrangeiros. Em um Sambódromo repleto de espectadores da cidade, mais habituados ao mundo carnavalesco, as canções "colaram" naturalmente nos ouvidos.
Já sob os primeiros raios de sol da manhã de ontem, a Vila Isabel encerrou o desfile sobre Martinho da Vila acompanhada por foliões que invadiram a passarela. A catarse foi impulsionada pelo samba de enredo azul e branco.
Um dos compositores da obra, André Diniz costuma escrever com Martinho. Além dos sucessos musicais do sambista, a música detalhou diferentes fases da vida do homenageado, como a relação com Angola e a cultura do país africano.
"Saber onde o coração dele ia ser tocado foi fundamental. Falar da família, da mãe, da liderança comunitária no morro, do dono do palco e, principalmente, sem perder a simplicidade: o chinelo de dedo", afirmou Diniz. "O segredo do samba da Vila é a emoção de uma criança que queria, um dia, sentar à mesa de um bar e trocar ideia com seu mestre", emendou.
Rituais pré-canto
Alguns preferem ser chamados de intérprete, como pedia Jamelão; outros não se incomodam quando o termo "puxador" é usado. Independentemente disso, boa parte dos cantores das escolas segue rituais específicos antes do desfile.Wander Pires, da Mocidade, chegou à avenida fumando um charuto. Concentrado, ele intercalava o fumo a pequenas doses de nebulização para preservar o fôlego antes de ter que cantar por mais de uma hora. Antes da largada, Wantuir e Wic Tavares, da Unidos da Tijuca, eram só sorrisos. Pai e filha, eles tiraram fotos e trocaram abraços com colegas de pavilhão.
Wantuir, aliás, fez questão de revelar o que fez para entrar no espírito da temática indígena apresentada pela Tijuca. Ele foi a uma aldeia e tomou emprestado acessórios para completar o visual. "Fui buscar com eles para pegar a energia que trazem da terra e das nossas florestas."
Depois dos 12 cortejos iniciados na sexta, a expectativa, agora, está centrada na abertura dos envelopes com as notas. A apuração está prevista para ocorrer às 16h de amanhã.