A expansão de construções irregulares em áreas de mananciais que abastecem a Grande São Paulo contribuiu para um recorde nas multas por desmatamento ilegal na capital paulista e em municípios vizinhos em 2021.
Dados da Secretaria de Infraestrutura e Meio Ambiente do Estado de São Paulo mostram que, em 2021, houve 824 autos de infração contra a flora no município de São Paulo.
O número representa uma alta de 49% em relação a 2020, ano que até então detinha o recorde de ocorrências desse tipo.
Boa parte das infrações ocorreu em áreas protegidas de floresta próximas às represas Billings e Guarapiranga, que abastecem bairros na Zona Sul de São Paulo e municípios da região do ABC, como São Bernardo do Campo e Santo André.
A legislação estadual restringe a construção de moradias nos arredores de mananciais, que são fontes de água usadas no abastecimento público.
Pesquisadores ouvidos pela BBC afirmam que a ocupação dessas regiões põe em risco os ocupantes e agrava os problemas de um sistema hídrico que já está sob forte pressão.
Eles atribuem o aumento dos autos de infração à pobreza crescente, à falta de programas de habitação e a obras viárias que facilitaram o acesso às regiões de mananciais, como o Rodoanel.
Já para a prefeitura, o fenômeno se deve ao "assédio enorme do crime organizado, que hoje praticamente domina a especulação imobiliária" na região (leia mais abaixo).
Sistema Cantareira
Segundo o MapBiomas, plataforma que monitora o uso do solo no Brasil, cerca de 27% do território da capital paulista é composto por florestas, que se concentram nos extremos sul e norte do município.
O tamanho dessa área tem se mantido relativamente estável desde 1985, quando começa a análise histórica do MapBiomas e áreas de mananciais já sofriam com ocupações.
A cobertura florestal no município, porém, diminuiu anualmente de 2017 a 2020, o último ano com dados disponíveis.
O bioma original que predomina no Estado e no município de São Paulo é a Mata Atlântica.
Dados da secretaria estadual de Infraestrutura e Meio Ambiente mostram que o Estado de São Paulo também teve recorde nos autos de infração contra a flora em 2021: foram 11.528 ocorrências, uma alta de 12% em relação a 2020.
O tipo mais comum de ocorrência foi "destruir ou danificar vegetação objeto de especial preservação".
Os dados revelam ainda que, além da zona sul de São Paulo, as matas na região da Serra da Cantareira, na zona norte, também estão entre os principais alvos dos desmatadores no município.
O fenômeno atinge ainda o município vizinho de Mairiporã, que abarca mananciais do Sistema Cantareira, a principal fonte de abastecimento hídrico da Grande São Paulo.
Mairiporã teve um recorde de 363 autos de infração contra a flora em 2021, crescimento de 114% em relação a 2020.
Outros municípios vizinhos em regiões de mananciais também têm tido alta nas multas por desmate ilegal.
Em Guarulhos, por exemplo, as ocorrências nos quatro primeiros meses de 2022 (147) já superam os índices registrados em qualquer ano completo.
Pobreza e valorização do solo
Para Euler Sandeville Junior, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), o avanço das ocupações irregulares por áreas protegidas de São Paulo decorre, em parte, da pobreza crescente no país, do aumento da população vivendo nas ruas e da falta de políticas habitacionais.
Outro fator por trás do fenômeno, segundo ele, são obras públicas que provocaram a valorização do solo na periferia.
"À medida que você moderniza trechos periféricos, a população mais vulnerável vai sendo expulsa por obras públicas ou por ações de reintegração de posse, e isso os leva a ocupar outras áreas", diz Sandeville.
Mas nem todo o desmatamento na Grande São Paulo está associado a ocupações pela população mais pobre, diz ele.
O professor cita loteamentos irregulares de chácaras em Mairiporã como exemplos de derrubadas que beneficiam grupos de rendas média e alta.
Segundo o professor, há ainda os casos de desmatamentos que, mesmo sendo nocivos, não geram multas, pois são licenciados pelo poder público.
Esse é o caso, diz Sandeville, de alguns empreendimentos imobiliários voltados às classes média e baixa no noroeste de São Paulo.
Sandeville afirma que várias construções nessa região são feitas em fragmentos de floresta que não são protegidos, mas que cumprem a função de interconectar áreas protegidas e formar uma coroa verde nos limites do município.
Ele defende como alternativa à urbanização dessas áreas a "produção de alimentos agroecológicos, que poderia gerar renda e uma alimentação mais saudável" para os moradores locais.
'Clima de impunidade'
Para Malu Ribeiro, gerente da causa Água Limpa da ONG SOS Mata Atlântica, o desmatamento em São Paulo é impulsionado "pelo clima de impunidade para crimes ambientais" no governo Jair Bolsonaro.
Ribeiro afirma que Bolsonaro "estimulou o desmonte da legislação ambiental brasileira" e questionou no Supremo Tribunal Federal (STF) a aplicação da Lei da Mata Atlântica, que ampliou a proteção do bioma.
Essas ações, segundo ela, gerou entre desmatadores a expectativa de que "crimes contra o meio ambiente deixariam de ser crimes".
Ribeiro afirma que dados do último Atlas da Mata Atlântica, produzido pela SOS Mata Atlântica e pelo Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), já mostravam um aumento de 402% no desmatamento na Mata Atlântica em São Paulo de 2019 a 2020 em comparação com 2018 a 2019.
A BBC enviou as críticas de Ribeiro ao Ministério do Meio Ambiente, mas não houve resposta até a publicação desta reportagem.
Responsável pelas políticas federais de habitação, o Ministério do Desenvolvimento Regional disse em nota que, "desde 2019, mais de 1,25 milhão de moradias foram entregues em todo o país", das quais 363,4 mil no Estado de São Paulo.
Segundo o órgão, na atual gestão, R$ 6,5 bilhões do Orçamento Geral da União foram usados para subsidiar moradias para famílias de baixa renda, e R$ 23 bilhões do FGTS (Fundo de Garantia do Tempo de Serviço) foram reservados para financiamentos habitacionais.
Impactos do Rodoanel
Para a representante da SOS Mata Altântica, a inauguração do trecho sul do Rodoanel, em 2010, facilitou a ocupação de áreas de mananciais.
A via cruza áreas de floresta, conectando rodovias que ligam São Paulo ao litoral.
Segundo Ribeiro, na época da inauguração, o governo estadual se comprometeu a criar parques nas margens do Rodoanel para desencorajar ocupações, mas os planos não avançaram.
"Enquanto isso não é feito, abre-se uma lacuna para que o desmatamento e o uso irregular aconteçam", afirma.
Ela diz que a construção de moradias em áreas de mananciais implica grandes riscos para os moradores.
"Temos assistido a um aumento de ocupações em áreas que estão secas, porque tivemos estiagens sucessivas, mas essas áreas são inundáveis ", diz.
Além disso, afirma que 22 milhões de pessoas na Grande São Paulo dependem dessas áreas para seu abastecimento, e que já se nota uma piora na qualidade da água em alguns trechos por causa das ocupações.
Segundo Ribeiro, a prefeitura tem o dever de remover moradias erguidas em áreas de risco ou que não tenham condições de receber saneamento básico.
"Essas áreas têm de ser desocupadas, senão teremos tragédias anunciadas", afirma.
Nos casos de ocupações mais consolidadas e que não ponham em risco os moradores, ela defende "fazer a regularização e a compensação ambiental para evitar problemas sociais mais graves".
Crime organizado
Em nota, o governo do Estado de São Paulo afirmou que "o número de autuações (por infrações contra a flora) reflete o esforço do Estado para coibir praticas criminosas como a supressão irregular da vegetação e intervenção em áreas especialmente protegidas".
O órgão diz ainda que "intensificou as ações de proteção ao meio ambiente" ao retomar a Operação Defesa das Águas em parceria com a prefeitura de São Paulo.
Em entrevista à BBC, o secretário-executivo de Mudanças Climáticas da Prefeitura de São Paulo, Antonio Fernando Pinheiro Pedro, diz que foram realizadas 14 operações desse tipo desde 2021, ano em que tomou posse o prefeito Ricardo Nunes (MDB).
Segundo Pedro, essas operações embargaram uma área equivalente a 80 campos de futebol.
Ainda assim, o secretário reconhece que "estamos correndo atrás do prejuízo" e que é "impressionante o descontrole na região dos mananciais".
Pedro atribui o avanço do desmatamento nessas regiões à ação de "quadrilhas de especuladores" e do Primeiro Comando da Capital (PCC), a maior facção criminosa de São Paulo.
"Estamos sofrendo um assédio enorme do crime organizado, que hoje praticamente domina a especulação imobiliária na região", diz o secretário.
Segundo Pedro, as quadrilhas perceberam que "o valor desse mercado é maior que o gerado pelo tráfico nessa região".
Ele diz que os grupos usam "métodos sofisticados" para burlar a fiscalização.
"Eles mantêm a mata na beira da estrada e começam o desmatamento pelo miolo. À noite, fazem as ruas e vão comendo a mata até chegar na borda", descreve.
Pedro afirma ainda que os desmatadores usam associações de moradores de fachada e contratam advogados para tentar barrar na Justiça a demolição das construções irregulares.
"Você vê que é uma rede extensa e que deve contar com proteção política", afirma o secretário, que não citou políticos nem partidos específicos.
Ele diz que, para fazer frente aos criminosos, a prefeitura tem realizado as operações em conjunto com a Polícia Militar Ambiental e com a Polícia Civil.
Agora Pedro diz que a prefeitura debate internamente a possibilidade de empregar a Guarda Civil Metropolitana na fiscalização de crimes ambientais.
Hoje, segundo ele, há pouco mais de 70 policiais militares ambientais atuando no município, além de oito fiscais da secretaria de Mudanças Climáticas.
"É uma guerra, mas estamos com um exército pequeno", afirma.
Quanto à crítica de que a falta de programas de habitação estaria estimulando as ocupações, Pedro afirma que a atual gestão da prefeitura já entregou 22 mil residências e realocou 6,4 mil famílias que estavam em áreas de mananciais.
Remover todas as ocupações irregulares nessas áreas, porém, seria bastante caro e complexo, segundo o secretário.
"Não estamos tratando de 700 ou 800 pessoas, mas de até 200 mil pessoas. Você precisa de ordem judicial e saber para onde vai levar essas pessoas", afirma.
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