Uma audiência pública para debater sobre a nova cartilha do Ministério da Saúde, que trata sobre aborto no Brasil, foi agendada para esta terça-feira (28/6), no Ministério. O documento, de autoria do responsável pela Secretaria de Atenção Primária do Ministério da Saúde, Raphael Câmara, prevê possibilidade de investigação criminal de vítimas de estupro e também de gestantes que estejam em risco de vida para a realização do procedimento.
O aborto nos casos de violência sexual e risco de vida para a gestante é legal e previsto em lei desde o Código Penal de 1940. Em caso de fetos anencéfalos, a interrupção da gestação é permitida desde 2010, por uma decisão do Supremo Tribunal Federal.
Especialistas e profissionais de saúde defendem, no entanto, que a cartilha “Atenção técnica para prevenção, avaliação e conduta nos casos de abortamento” não tem autonomia para sobrepor à legislação, que permanece vigente. “Em vez de promover a saúde, o manual vem recheado de desinformações que podem fazer com que profissionais da saúde se sintam inseguros de seguir a lei”, argumenta Paula Viana, enfermeira obstetra e uma das coordenadoras do Grupo Curumim, uma ONG feminista de Recife/PE.
“No manual, diz que o médico tem direito absoluto de negar a realização do procedimento. Isso impacta no que é mais fundamental na medicina e na enfermagem, que é a responsabilização pela pessoa que está procurando ajuda. A objeção de consciência pode ser acionada como uma exceção, uma possibilidade que se tem desde que a pessoa não esteja em risco de vida e que possa ser encaminhada para um serviço que a atenda integralmente”, explica a enfermeira.
O documento cita ainda que o aborto apenas deixa de ser crime quando “comprovadas as situações de excludente de ilicitude após investigação policial”, algo considerado como “inconstitucional”, segundo nota emitida pela Anis - Instituto de Bioética. O texto da Anis argumenta que exigir a investigação policial para a realização do procedimento em caso de risco de vida para a pessoa gestante é de fora das competências legais das autoridades policiais para decidir sobre a autorização.
Um dos pontos mais polêmicos do manual é a previsão de investigação policial de vítimas de estupro e de pessoas em risco de vida com a gestação que optem pelo aborto. “A comunicação às autoridades policiais fere um direito do paciente e é uma violação de sigilo profissional também”, conta Polly Policarpo, ativista da Frente Mineira Legaliza pela Descriminalização e Legalização do Aborto.
A tentativa de estabelecer uma nova regra pelo manual é controversa, já que um levantamento da revista IstoÉ de 2016 revelou que somente 3% das denúncias de estupro acabam em condenação.
A audiência pública está marcada para começar às 8h de terça-feira, com encerramento às 15h, e há previsão de transmissão ao vivo. Não foi divulgada a programação da reunião, mas a participação popular pode ser solicitada pelo e-mail audiencia.saps@saude.gov.br
Para ativistas, essa foi uma forma de silenciar os movimentos contrários à cartilha. Foi organizada uma campanha virtual, com a hashtag #CuidemDeNossasMeninas na tentativa de mobilizar pela revogação do documento do Ministério da Saúde. A campanha recolhe assinaturas para pressionar os agentes da pasta por e-mail.
“A convocação foi feita em cima da hora, com o intuito de diminuir a participação de movimentos sociais, retirando a possibilidade de representatividade das pessoas que gestam. Pressionamos pela revogação do manual e também pelo adiamento da audiência”, diz Polly Policarpo.
“Essa audiência pública é obscura, não traz regras claras e não convida especialistas. O manual também não foi feito por especialistas nem por associações que tenham experiência em saúde reprodutiva, que pudessem dar respaldo técnico-científico”, finaliza Paula Viana.
Tema em alta
A audiência pública acontece em meio a diversos debates públicos sobre violência contra a mulher e direitos sexuais e reprodutivos.
Na semana passada, foi divulgado pelo portal The Intercept o caso de uma menina de 11 anos de Santa Catarina que permaneceu sob tutela do estado por mais de um mês sendo impedida de realizar o aborto, que é um direito. O procedimento foi realizado na quarta-feira (22/6), no Hospital Universitário Professor Polydoro Ernani de São Thiago, da Universidade Federal de Santa Catarina, segundo nota do Ministério Público Federal.
O direito ao aborto legal foi revogado nos Estados Unidos na última sexta-feira (24/6), por uma decisão da Suprema Corte que reverteu a história disputa Roe vs. Wade, que garantiu o direito em 1973. Agora, os estados têm autonomia para definir se a interrupção da gestação é legalizada ou não.
Durante o fim de semana, veio à tona o caso da atriz Klara Castanho, de 21 anos, que se pronunciou após pressão midiática dizendo que engravidou por ter sido vítima de um estupro e que entregou o bebê para a adoção.
Sendo julgada em redes sociais, o caso levantou o tema do permanente cerceamento e controle dos corpos de mulheres, que têm sido questionadas tanto em decisões pelo aborto, nos casos legais, quanto na entrega também legal para a adoção.