Para o representante da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO/ONU) no Brasil, Rafael Zavala, o país deixou de priorizar o combate à fome em nível nacional nos últimos anos, levando a uma "cifra assustadora" de insegurança alimentar em todo seu território.
Segundo o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, conduzido pela Rede PENSSAN e divulgado no início de junho, 33,1 milhões de brasileiros vivem em situação de fome no país. No fim de 2020, eram 19,1 milhões.
Em outra pesquisa, do Datafolha, feita na penúltima semana de junho, 1 em cada 4 entrevistados disse que a quantidade de comida disponível em casa era inferior ao necessário para alimentar sua família.
"Não se priorizou o combate à fome em nível nacional", disse Rafael Zavala em entrevista à BBC News Brasil.
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Segundo o mexicano, que ocupa o posto máximo da FAO/ONU no Brasil desde o final de 2018, o problema do Brasil não é de escassez de alimentos como outras partes do mundo, mas sim de desigualdade.
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"O país sabe como fazer para mudar essa situação", diz o mexicano.
Zavala concedeu entrevista à BBC News Brasil por ocasião de sua participação nesta quinta-feira (30/06) na Conferência de Segurança Internacional do Forte de Copacabana, evento da área de segurança internacional idealizado pela Fundação Konrad Adenaur, Delegação da União Europeia e Centro Brasileiro de Relações Internacionais.
A seguir, os principais trechos da entrevista:
BBC News Brasil - Diversas pesquisas recentes revelaram uma piora significativa na condição da fome no Brasil. Uma delas fala em 33,1 milhões de brasileiros em insegurança alimentar, ou 15,5% da população. Como o senhor avalia a atual situação?
Rafael Zavala - O estudo citado mediu o número de pessoas entrevistadas que disseram que, em sua percepção, passaram fome em algum momento. Isso quer dizer que não existem atualmente 33 milhões de pessoas passando fome ao mesmo tempo. Mas, de qualquer maneira, é uma cifra assustadora.
Podemos dizer que existem atualmente dois bolsões de pobreza no Brasil: as cidades grandes e as zonas rurais mais afastadas e incomunicáveis, em que uma interrupção do fluxo de abastecimento pode gerar condições de insegurança alimentar grave.
Por outro lado, fica muito claro que o Brasil teve uma das experiências mais bem-sucedidas, não só na América Latina mas no mundo, de combate à fome há cerca de 15 ou 20 anos. Ou seja, o país sabe como fazer para mudar essa situação.
BBC News Brasil - Qual foi a fórmula utilizada que contribuiu para essa experiência bem-sucedida? Como ela deve ser adaptada para o momento atual?
Zavala - Foram seguidas cinco grandes prioridades. A primeira delas foi de combate à fome em todo o país. A segunda e terceira foram o aumento do salário mínimo e o investimento na geração de empregos. Em seguida, se fortaleceu os programas de merenda escolar, cozinhas e restaurantes comunitários.
A quinta e última prioridade foi de promoção e inclusão da agricultura familiar nas compras públicas, que implicou em estabilidade para muitas famílias que de outra maneira teriam migrado para os centros urbanos.
Desses cinco pontos, somente os dois últimos continuam estáveis atualmente. Não se priorizou o combate à fome em nível nacional nos últimos anos. Manteve-se o investimento em programas de alimentação e promoção de agricultura familiar, mas isso não foi suficiente, como ficou muito claro.
A estratégia para o próximo governo, seja ele qual for, precisa ser na direção de priorizar o combate à fome em todo o país, além de continuar com o maior investimento para geração de empregos e fortalecimento de programas de inclusão social.
O problema no Brasil e na América Latina não é de disponibilidade de alimentos, mas sim de desigualdade, pobreza e falta de renda.
BBC News Brasil - A pandemia de covid-19 piorou a situação?
Zavala - Sim, a pandemia deu uma grande sacudida em muitos setores. Quando se decretou o confinamento e as escolas foram fechadas, por exemplo, muitas crianças ficaram sem seu alimento principal do dia.
O auxílio emergencial foi um esforço notável, mas não foi suficiente e muitas pessoas passaram fome - calcula-se cerca de 20 milhões no primeiro ano da pandemia. Mas a covid-19 também provocou inflação, que significou preços mais altos de praticamente tudo.
Além disso, boa parte da população brasileira se ocupa na economia informal e viu seus ingressos para alimentação diminuírem na pandemia. Elas então passaram a comprar
alimentos de menor qualidade, mais ultraprocessados e menos proteína, frutas, e verduras, levando a uma má nutrição. E esse problema se traduz em obesidade.
Então um segundo desafio, além da fome, é promover dietas mais saudáveis e ao mesmo tempo garantir que as famílias tenham renda suficiente para poder adquirir uma dieta saudável. Esse é um dos grandes desafios, não só do Brasil, mas da América Latina como um todo.
BBC News Brasil - O governo brasileiro poderia ter agido de forma diferente para evitar ou minimizar os impactos da pandemia na insegurança alimentar?
Zavala - Posso imaginar que, há cinco anos, o problema da fome estava mais concentrado no Norte e Nordeste do Brasil. Então é possível que tenha havido uma interpretação de que tratava-se apenas de um problema regional. Mas essa realidade mudou e esse tema precisa ser uma prioridade nacional agora.
Além disso, a fome não é uma tarefa somente do governo, mas também da sociedade civil, dos governos estaduais e das prefeituras, sobretudo no caso do Brasil, que é o país mais descentralizado da América Latina.
O Rio de Janeiro, por exemplo, tem um plano municipal de segurança alimentar que gosto muito, com esquemas de cozinhas econômicas e o Prato Feito, voltado para as populações mais vulneráveis. E esse exemplo não é único.
Sou testemunha de programas de restaurantes comunitários e outros esquemas similares em Belo Horizonte, no Distrito Federal e outras cidades que precisam ser melhor promovidos.
Mas a única cifra aceitável de fome no Brasil é zero.
BBC News Brasil - Ao que mais o senhor atribuiria a piora nos dados?
Zavala - Há um contexto global de crise. Dizemos que há geralmente quatro grandes causas por trás da fome: conflitos armados, crise econômica, choque climático e epidemias. As quatro estão acontecendo simultaneamente no mundo hoje.
Nos últimos cinco anos, retrocedemos 10 anos em termos de dados de fome. Entre 2016 e 2021, o número de pessoas em situação de insegurança alimentar cresceu 80%. Desses, 72% estão em países com conflito armado e 16% em países com conflito econômico severo. Os demais 12% são causados pelo choque climático, especialmente pelos grandes períodos de secas registrados na África e Ásia.
Também é importante mencionar a invasão da Ucrânia pela Rússia, que gerou uma distorção logística global, aumento de preços e inflação. Neste exato momento, 350 navios cargueiros estão atracados no porto de Odessa cheios de grãos e fertilizantes, insumos estratégicos para produzir alimentos, que iriam para todo mundo, mas não estão chegando.
O próprio secretário-geral da ONU, António Guterres, admitiu que países como Iêmen, Somália e Sudão do Sul, que dependem da produção de trigo da Ucrânia, podem sofrer de "fome múltipla".
BBC News Brasil - Um estudo da Embrapa, a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária, mostrou que o Brasil é responsável pela alimentação de cerca de 800 milhões de pessoas em todo o mundo com o seu agronegócio. Ao mesmo tempo, a insegurança alimentar não para de crescer. Ao que o senhor atribui essa contradição?
Zavala - Ao fato de que o país não tem um problema de disponibilidade de alimentos, mas sim de acesso econômico a eles.
O Brasil é conhecido como 'celeiro do mundo' ou 'cesta de pães' do mundo por sua produção de alimentos, em especial de grãos. Mas eu gosto de chamá-lo de 'locomotiva alimentar mundial'. Ou seja, os alimentos já existem, estão disponíveis, mas não são acessíveis para famílias que têm rendas mínimas.
A América Latina tem 650 milhões de habitantes e produz comida para alimentar o dobro da população, mas o grande desafio é fazer com que esses alimentos cheguem aos lares. E é por isso que temos que trabalhar pela geração de renda.
BBC News Brasil - Em termos de produção agropecuária, quais são os desafios que o Brasil tem pela frente?
Zavala - São dois grandes desafios. O primeiro é que o Brasil é uma locomotiva alimentar mundial, mas que utiliza combustível produzido a 12 mil quilômetros de distância. A maior parte dos fertilizantes e dos insumos agrícolas utilizados no país vem da Bielorrússia, Ucrânia, Rússia e norte da África É preciso diminuir essa dependência e investir em um movimento regional, pois países como Argentina e Chile sofrem do mesmo mal.
O segundo grande desafio está no fato de que, diferentemente de outras locomotivas alimentares como Estados Unidos, Canadá, Argentina, Índia e China, o Brasil fica muito perto do coração da biodiversidade planetária. Ou seja, o obstáculo é gerar uma estratégia de agricultura verdadeiramente sustentável, com desmatamento zero, para alimentar uma população com fome zero.
BBC News Brasil - Houve uma grande repercussão aqui no Brasil quando o país saiu do Mapa Mundial da Fome da ONU em 2014. Onde o país se encontra nesse momento?
Zavala - O Mapa da Fome da ONU não existe mais. Ele era baseado nos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODMs), estabelecidos em 2000, que foram substituídos pelos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável - e com a mudança mudamos a forma de comunicar os dados.
Mas vale destacar que, se o Mapa ainda existisse, o Brasil estaria dentro no momento atual. Eram listados os países com mais de 5% da população em condição de insegurança alimentar - que é o caso do Brasil hoje.
- Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62004074
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