Jornal Estado de Minas

O GRITO QUE LIBERTOU O BRASIL

200 anos da Independência: de Vila Rica ao Ipiranga

O caudaloso curso da história do Brasil tem muitas nascentes em Minas, e no terreno fértil que se alonga entre as montanhas, foram plantadas sementes de novos ideais, colhidos frutos da esperança e abertos caminhos para a liberdade.





Na semana em que se comemoram os 200 anos da Independência do Brasil, ocorrida em 7 de setembro de 1822, homens e mulheres desta terra podem se orgulhar da trajetória daqueles considerados heróis da pátria, a exemplo de Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes (1746-1792), expoente da Inconfidência ou Conjuração Mineira (1788-1789).

Mas, se a liberdade era a meta comum, qual a relação entre o movimento que eclodiu nas Gerais mais de três décadas antes e o Grito do Ipiranga, em São Paulo, proclamado por Dom Pedro I (1798-1834)? E como a notícia da separação do Brasil de Portugal chegou aqui? Com a palavra, especialistas; e, na história, documentos que registram fatos e ajudam a responder a essas e outras questões.
 
 
Ouro Preto – A resposta para a primeira pergunta que abre esta série de matérias do Estado de Minas sobre o bicentenário da Independência do Brasil e suas relações com os ideais de liberdade que surgiram em Minas não é simples e exige reflexão. Antes de tudo, “é preciso analisar o século 18, quando havia um clima de tensão permanente e de violência na região das minas”, diz o professor Francisco Eduardo de Andrade, coordenador do programa de pós-graduação em história da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop).




  • Bicentenário da Independência: testemunhos da história
Desde a descoberta do ouro, no início do século 18, e dos diamantes, a partir da década de 1720, a Coroa portuguesa impunha a cobrança dos impostos sobre as riquezas, “o que gradativamente, conforme percepções de aumento da carga de tributos ou de imposições, era, com frequência, considerado um abuso e uma injustiça pela população, em especial os donos das lavras”, explica.

Mas pouco adiantava espernear, e, como sempre ocorre, a corda arrebentou do lado mais fraco – nesse caso, a mão pesada do rei sobre um homem da colônia. “Em 1720, Portugal já havia enforcado o tropeiro Felipe dos Santos, no episódio conhecido como Revolta ou Sedição de Vila Rica”, destaca o professor Francisco Eduardo. Felipe dos Santos, líder do levante, se revoltou contra a criação das casas de fundição pelo rei português, que também proibiu a circulação de ouro em pó e contra o monopólio do comércio dos principais gêneros por reinóis (lusitanos). Além de ir para a forca, o líder rebelde teve o corpo esquartejado.

TENSÃO SOCIAL PREOCUPAVA A COROA

Em uma terra em que havia uma “conflitualidade endêmica”, conforme ressalta o professor da Ufop, a tensão social crescente preocupava a Coroa, enquanto explodiam motins, revoltas de escravizados e outros atos de rebeldia diante da carestia, dos preços altos de gêneros alimentícios e da alta tributação. “Tudo isso é um fermento que vai chegando a um limite e gerando conflitos, inclusive entre as autoridades régias e os ‘potentados do sertão’ das fronteiras do território mineiro, nas primeiras décadas do século do ouro, então insatisfeitos por ter os interesses econômicos e políticos feridos.”





“Com o passar do tempo”, conta o professor Francisco Eduardo, “há um despertar nos brasílicos, como então se podem chamar os naturais do Brasil, muitos considerados mestiços, para o pertencimento à terra, ao território americano”. Essa população começou a sentir as injustiças e as diferenças entre eles, os colonos, e os reinóis, os portugueses. “A consciência e o descontentamento aumentam cada vez mais. Claro, no entanto, que as identidades são muito fluidas e se constituem na conflitualidade social experimentada pelos moradores”, acrescenta.

No período que antecede a Conjuração Mineira, a população das minas ainda não tinha ideia do que era uma nação, de um território único como se conhece hoje. Nem pensava em separação de Portugal. “Era tudo muito desconhecido. Costumavam, nos motins ou revoltas, exaltar o soberano português ('Viva o rei!') e criticar duramente o governador e as autoridades régias das Minas Gerais.”

“A gênese de todo o processo está na mutabilidade, na instabilidade que se verificava aqui. Esse é o cenário que levou à Inconfidência Mineira e plantou as sementes da Independência do Brasil”, analisa o professor.





INCONFIDÊNCIA MINEIRA JÁ ERA SINTOMA DA CRISE

Também da Ufop, a professora de história Andréa Lisly Gonçalves joga mais luz sobre os antecedentes da Independência do Brasil: “A Conjuração ou Inconfidência Mineira (1788-1789) já era um sintoma da crise no sistema colonial, assim como as conjurações baiana, em 1798, e do Rio de Janeiro, em 1794, e outras que ocorrem em toda a América portuguesa. Esses movimentos tinham características bem diferentes dos anteriores, que eram bem pontuais e não iam contra o rei. Já nesses casos, a revolta era contra o sistema, contra o rei de Portugal”.

Exatamente para pôr fim a tal ebulição é que a família real portuguesa teria vindo para cá, em 1808 – uma interpretação defendida por muitos historiadores e ainda desconhecida da maioria dos brasileiros. “O Brasil era o território mais importante de todo o império português. Então, mais do que fugir das tropas do imperador francês Napoleão Bonaparte (1769-1821) que chegavam a Portugal, o objetivo do príncipe regente Dom João VI era abafar os conflitos no Brasil”, afirma.

Com efeito, a chegada da corte consegue reduzir o nível de tensão. “Mas, sem dúvida, movimentos como a Inconfidência prepararam uma geração de brasileiros para a Independência do Brasil”, avalia a especialista.





Frisando que entre o fim no século 18 e início do 19 ainda não havia uma ideia formada de Brasil como unidade, Andréa afirma que mesmo o 7 de setembro não teve um efeito imediato sobre a colônia recém-declarada independente. “No início, a nova realidade foi mais assimilada em São Paulo e no Rio de Janeiro, depois em Minas e no Sul do país, custando a se propagar por outras regiões. Havia também uma desconfiança sobre as reais intenções de dom Pedro I – se seria um monarca absolutista ou seguindo uma constituição”, destaca Andréa Lisly Gonçalves. A história mostraria que ele governaria sob influência de uma constituição.
 
Placa no antigo Palácio dos Governadores, hoje prédio da Escola de Minas, marca o pronunciamento de Dom Pedro I (foto: Gladyston Rodrigues/EM/D.A Press)
Placa no antigo Palácio dos Governadores, hoje prédio da Escola de Minas, marca o pronunciamento de Dom Pedro I (foto: Gladyston Rodrigues/EM/D.A Press)
  

Em Minas, o primeiro aviso 

 
Antiga Vila Rica e ex-capital de Minas, Ouro Preto inspira poetas, exala cultura, atrai pesquisadores e se mantém como um museu vivo, tal a grandeza de sua história e riqueza das memórias abrigadas em vias públicas e edificações particulares ou não. No bicentenário da Independência do Brasil, a primeira cidade brasileira a se tornar patrimônio mundial (1980) também tem entre seus marcos o fato de guardar na memória o pioneiro “brado retumbante” de dom Pedro I. Por isso, que o visitante não se surpreenda ao enxergar, na Praça Tiradentes, no Centro Histórico, um “mensageiro da realeza” – trata-se, na verdade, do ator de mímica Danilo Pedrosa, trazendo de volta outros tempos.

Uma volta ao 9 de abril de 1822, quando, cinco meses antes de gritar “Independência ou morte” às margens do Rio Ipiranga, em São Paulo (SP), o então príncipe regente do Reino Unido do Brasil anunciava em Minas Gerais, ao povo de Vila Rica, “que os laços do despotismo não prevaleceriam sobre os anseios de liberdade e independência”.





Na sacada do antigo Palácio dos Governadores, construção de meados do século 18, dom Pedro I fez seu discurso à po- pulação de Vila Rica. Nesse prédio, hoje ocupado pelo Museu de Ciência e Técnica da Escola de Minas, há um busto em bronze do príncipe – peça que fez parte das comemorações dos 150 anos da Independência, o sesquicentenário, em 1972.

“Naquela viagem a Minas, dom Pedro I permaneceu durante muito tempo e visitou vários lugares. A vinda dele funcionou como um termômetro. Queria sentir o ‘calor’ da população em Vila Rica, São João del-Rei e outros núcleos, pois estava descontente com a corte portuguesa, que o queria de volta a Lisboa”, explica o professor de história Alex Bohrer, do Instituto Federal de Minas Gerais (IFMG), autor de livros sobre a história colonial.

No célebre 9 de abril de 1822, destaca Bohrer, “o príncipe regente firmou um compromisso constitucional, mostrando que queria governar com a constituição, com os deputados eleitos”, e afirmando que o governo de Portugal era despótico, uma característica dos soberanos absolutistas. “Portanto, a viagem a Minas foi para sentir os ânimos e fazer um pronunciamento antidespótico, para se mostrar um possível monarca das luzes, sem a opressão do passado português.”