O período da pandemia impactou os índices de violência pelo país, e a retomada das atividades presenciais ocorre em novo contexto: há mais de 1 milhão de novas armas legais no Brasil e menos controles sobre elas.
"Foram anos de desconstrução de políticas e de descontrole de regras que determinam comportamentos preventivos", afirma Melina Risso, diretora de projetos do Instituto Igarapé, a respeito do governo de Bolsonaro.
Os exemplos vão do afrouxamento da política de controle de armas às alterações no Código de Trânsito, passando pelo desmonte da estrutura de fiscalização ambiental e pela mudança do Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) da pasta da Justiça para a da Economia.
Folha - Quais os principais desafios na segurança pública?
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Entre os desafios mais recentes estão a explosão da violência na Amazônia Legal, a nacionalização de organizações criminosas, a expansão do controle territorial por milícias, o uso de meios digitais para a prática de crimes e as novas formas de controle do Estado por meio de biometria e outras tecnologias.
Folha - Mais armas trazem mais segurança?
Melina Risso - Apesar da tese bolsonarista de que o armamento da população leva à queda da criminalidade, estudos indicam que, onde há mais armas, há mais mortes e mais violência.
O Estatuto do Desarmamento (2003) criou regras mais restritivas ao acesso a armas e penas mais duras para porte e posse ilegais, desacelerando o crescimento de homicídios --de 6%, entre 1980 e 2003, para 0,9% nos 15 anos seguintes, segundo o Atlas da Violência, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada.
Desde janeiro de 2019, quando decretos presidenciais mudaram as regras do acesso a armas e munições no Brasil, até o final de 2021, mais de 1 milhão de novas armas foram registradas, seja para uso pessoal ou institucional (caso de policiais), de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Foram 994 milhões de munições vendidas no país, segundo o Instituto Sou da Paz. Além disso, os sistemas de controle de armas no país não estão integrados.
Folha - A queda de assassinatos é sinal de que a segurança vai bem?
Melina Risso - A redução deve ser comemorada, mas precisa ser melhor compreendida. Especialistas dizem que a queda é fruto do envelhecimento da população, de melhorias do trabalho policial e de tréguas nas guerras entre facções do crime organizado.
Desde 2018, essa taxa caiu 19%, mas o país ainda concentra 2,7% da população global e 20,4% dos homicídios do planeta. O pico da violência letal no Brasil ocorreu em 2017, com 30,2 assassinatos por 100 mil habitantes. Em 2021, eram 22,3 --muito acima de países populosos como EUA (6,52) e Índia (2,95).
Do ponto de vista territorial, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, na última década houve queda de homicídios em todas as regiões, à exceção da Norte, onde essa taxa cresceu 62%. Do ponto de vista populacional, em 2021, 91% das vítimas eram homens, 78% eram pessoas negras e 51% eram jovens.
Folha - Por que as mortes aumentaram na região Norte?
Melina Risso - O incremento da violência letal no Norte do país está ligado às dinâmicas dos vários mercados ilícitos que convivem na região e à questão demográfica: onde há mais jovens tende a haver mais criminalidade violenta, e na região essa parcela segue crescendo.
Além disso, hoje a região da Amazônia Legal e sua população estão imersas num ecossistema de crimes ambientais, como extração ilegal da madeira, de minérios e de animais selvagens, de crimes ligados à terra, como grilhagem e invasão de territórios indígenas, e de redes do narcotráfico. "A região faz fronteira com Bolívia, Peru e Colômbia, que produzem 4.000 toneladas de cocaína por ano. Metade disso vem ao Brasil", diz Renato Sérgio de Lima, presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).
Folha - Como lidar com a nacionalização do crime organizado?
Melina Risso - O crime organizado brasileiro, agora articulado nacionalmente, requer ações coordenadas do governo federal, mas o quadro é de falta de planejamento e articulação entre órgãos de segurança pública e do sistema de Justiça criminal.
Aprovado em 2018 para integrar esferas de governança e instituições de combate ao crime e à violência, o Sistema Único de Segurança Pública (SUSP) continua na gaveta. Ele estabeleceu parâmetros nacionais de cooperação e de uso de dados, utilização de evidências científicas para o planejamento de ações e mecanismos de gestão.
Folha - Por que polícias precisam de mais capacitação, valorização e controle?
Melina Risso - Via de regra, as polícias sofrem com baixos salários, falta de estrutura, pouca capacidade investigativa e ausência de protocolos nacionais de atuação. O resultado é insatisfação de policiais e atuação ineficiente. Segundo dados do Instituto Sou da Paz, o Brasil só esclarece 37% dos milhares de homicídios do país.
As polícias brasileiras também estão entre as que mais matam no mundo, o que implica maior controle da atividade. Maior controle também é visto como necessário na participação de policiais na política. Nas eleições de 2022, candidaturas de membros das forças de segurança do Estado cresceram mais de 27%.
Folha - Por que a atual política de drogas gera mais problemas?
Melina Risso - A questão vem sendo tratada pela via da repressão e da Justiça criminal. Assim, além da criminalização de quem precisa de tratamento médico, a política de drogas brasileira mantém ao menos 230 mil pessoas presas por tráfico de drogas, a maioria dos quais jovens, negros e pobres, que engrossam as fileiras de facções. "Seguimos prendendo o pequeno traficante, sem desmantelar a cadeia que levou a droga até ele", diz Janine Salles de Carvalho, da Rede de Justiça Criminal.
Folha - Quais desafios a tecnologia impõe?
Melina Risso - A prática de crimes por meios digitais e os potenciais das criptomoedas na ampliação da atuação de redes criminais devem se impor como um novo desafio. Além disso, há tecnologias que podem ajudar em prevenção e repressão ao crime, mas que têm potencial de violar a privacidade dos cidadãos, como o uso de reconhecimento facial.