Um olhar mais atento a Lina e ao que ela tem a dizer a profissionais de saúde que falam a língua yanomami permite avançar na compreensão do que se passa na maior terra indígena do Brasil, onde seus habitantes estão adoecendo com desnutrição grave, infecções respiratórias e malária.
Lina chegou ao hangar da empresa Voare Táxi Aéreo, numa cidade vizinha a Boa Vista (RR), às 12h50 deste domingo (29).
Para descer da pequena aeronave, precisou ser carregada por um profissional de enfermagem. Fora do avião, foi colocada de pé, mas não conseguiu andar. Voltou a ser carregada. Numa sala com ar condicionado, esperou por transporte a um hospital.
A indígena yanomami vestia uma camiseta surrada. Estava descalça, com os pés bastante sujos. Com dificuldade de respirar, pronunciava frases curtas nas conversas com os profissionais que participaram do resgate.
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De tão doente, Lina precisou ser transportada para um hospital na cidade, dentro de um avião da Voare, contratada pelo DSEI (Distrito Sanitário Especial Indígena) Yanomami, vinculado ao Ministério da Saúde.
Esses voos têm sido frequentes, com a realização de seis remoções de pacientes por dia, em média. Há ainda os casos de "remoções extras", expressão usada pelos profissionais de saúde envolvidos para designar os transportes não planejados de indígenas. Esses deslocamentos ocorrem porque há urgência no caso, e geralmente envolvem indígenas antes considerados apenas acompanhantes.
Quando explica aos agentes de saúde o que a deixou doente, com uma desnutrição grave, Lina cita três fatores: "fome, pouca comida e malária".
Ela explica que é de uma comunidade na região de Surucucu. Os agentes já constataram que esse lugar sofre forte impacto do garimpo ilegal de ouro, cada vez mais próximo.
A Terra Indígena Yanomami foi invadida por mais de 20 mil garimpeiros, estimulados pelo discurso do então presidente Jair Bolsonaro (PL) a favor da mineração nesses territórios e pela conivência de seu governo com a atividade criminosa.
Os garimpeiros agem com máquinas, aviões e helicópteros clandestinos, pertencentes a suspeitos de liderarem organizações criminosas.
O ápice das invasões foi o ano de 2022, quando a atividade se expandiu até comunidades mais distantes, que conseguiam manter uma relativa distância do garimpo. Aldeias passaram a ter uma relação de proximidade com áreas exploradas na busca por ouro, com cooptação de indígenas.
Lina explica aos agentes de saúde que os indígenas de sua comunidade são andarilhos, e passaram a andar de comunidade em comunidade atrás de comida.
Essas viagens a pé na floresta duram 15, 20 dias. "A gente vai até as outras comunidades atrás de comida", diz, em conversa traduzida pelos agentes de saúde.
"Muita gente em estado grave de saúde vai ficando para trás. E a gente não sabe se morreu ou não", afirma.
As infecções por malária ocorrem nesse percurso. Com os dedos, a indígena indica ter conhecimento de três mortes recentes de parentes pela doença, ao longo das caminhadas atrás de comida.
Uma das comunidades buscadas pelo grupo foi a de Feijão Queimado, altamente impactada pelo garimpo. "Não tinha macaxeira, não tinha banana", diz Lina.
Segundo ela, o que os indígenas buscam são uma roça farta em macaxeira e banana e um lugar com "pouca malária". Antes que isso venha a ocorrer um dia, Lina vai passar por tratamento médico na cidade, para que busque se recuperar da malária e da desnutrição grave.
Pouco antes da chegada do avião onde ela estava, uma aeronave pousou na pista da Voare com outros três indígenas da região de Surucucu.
Um homem e uma mulher têm malária; ela está bastante desnutrida. A mulher é mãe da criança que estava no voo, com quadro de desnutrição grave e pneumonia, conforme os profissionais de saúde envolvidos no resgate. Os três foram levados a hospitais em Boa Vista.
Segundo o Ministério dos Povos Indígenas, 99 crianças yanomamis morreram em 2022 em decorrência dos impactos do garimpo ilegal. As mortes ocorreram por desnutrição, diarreia, pneumonia e outras doenças, conforme a pasta. As crianças tinham entre um e quatro anos de idade.
Em menos de dois anos, foram 44 mil casos de malária na terra yanomami, onde vivem 28 mil indígenas. Mais da metade das crianças está desnutrida, conforme o MPF (Ministério Público Federal). Em comunidades mais isoladas, o índice chega a 80%.