Ainda moleque, José Ferreira Filho ganhou o apelido de Tomate. Criança tímida que era, as bochechas enrubesciam fácil e logo o deduravam. O acanhamento se foi, a alcunha ficou, e hoje ele é conhecido como padre Tomate, a serviço dos católicos nas paróquias paulistanas de São Vito Mártir (Brás) e Nossa Senhora do Brasil (Jardim América).
"Eu sempre admirava as pessoas que tinham desenvoltura diante do público, e agora me considero alguém que aprendeu a ser assim também", diz. "Afinal, o sacerdócio requer isso de nós."
O sacerdócio de fato requer isso e muito mais dos clérigos, e a fatura vem em forma de fragilidades na saúde física e mental. Os padres brasileiros estão estressados, alguns até deprimidos. Quase metade deles pratica pouco ou nenhum exercício. Só 1 em cada 10 já teve acompanhamento psiquiátrico.
São dados colhidos por José Carlos Pereira, sociólogo e também padre, como os tantos que ele entrevistou para a pesquisa condensada no recém-lançado "Operários da Fé" (Matrix Editora).
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Pereira pesca em fatos históricos possíveis explicações para a prevalência da branquitude. Referência na sociologia da religião, Antônio Flávio Pierucci (1945-2012) recordava as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, de 1707, "que traziam, desde os tempos de Anchieta, o requisito de pureza de sangue, que excluía os indígenas, os negros e mestiços de todo gênero, mamelucos, crioulos, mulatos".
O religioso Frei Caneca (1779-1825) é um exemplo: chamado pejorativamente de "filho de pardos", teve que branquear sua genealogia e sustentar que só a tataravó "talvez tivesse sangue negro" para ser admitido na ordem católica.
Até hoje, aponta Pereira, de 477 bispos católicos brasileiros, apenas 12 são afrodescendentes.
Padre Tomate vai na contramão de outra estatística levantada pelo autor: já contava meio século de vida quando entrou no sacerdócio. Chegou a se formar em tecnologia da informação e fazer uma pós-graduação em comunicação empresarial. Teve até uma namorada que por pouco não virou ex-mulher do padre. "Tinha tudo para casar com esta moça. Só que eu me sentia extremamente amado e não sentia que podia amá-la tanto de volta."
Preferiu a vida de batina e hoje, aos 55 anos, é mais velho do que a maioria dos padres entrevistados. A pesquisa revelou um clero jovem: 47,6% têm menos de 45 anos. Só 3 em cada 10 clérigos têm de 56 anos para cima.
Pereira, contudo, admite uma limitação no levantamento: os idosos tiveram mais dificuldade em participar, seja por desinteresse, seja por falta de intimidade com o formulário online adotado após a pandemia de Covid-19. "A questão da tecnologia amarrou um pouquinho para eles."
O pesquisador aponta outros campos em que as respostas podem não espelhar a realidade. Como quando perguntou se os padres tinham dúvidas sobre sua identidade afetiva-sexual, e 94,4% disseram que não.
Para Pereira, o número é duvidoso. "A maioria se declara heterossexual. Na convivência, sabemos que não é isso."
Ele desconfia que mais da metade do clero "seja tendencialmente homossexual", mas frisa que isso não passa de uma suposição, já que não há levantamento sério sobre o tema. "Ela está baseada em minha convivência de mais de 30 anos com padres e candidatos ao sacerdócio."
Pereira diz que ser homossexual não é um problema em si. Afinal, na teoria não deveria fazer diferença um padre sentir atração por mulher ou homem. Todos estão condicionados ao celibato --prática que, aliás, "a maioria concorda, mas nem todos vivem".
Já os múltiplos casos de abuso de menores devem ser punidos com rigor pela Igreja Católica, diz. Ele só faz uma ressalva: embora a repercussão das denúncias grude no imaginário popular e passe a impressão de assédios em larga escala, "a grande maioria dos padres não é pedófila".
No campo da sexualidade, há o que a doutrina católica discerne como "atos impuros", como a masturbação e o consumo de pornografia "ou de imagens visualizadas, acidental ou intencionalmente, nas redes sociais ou produzidas pela imaginação". A "libido sublimada" por votos de castidade e celibato não impede que vez ou outra esses "pecados" acometam sacerdotes, segundo Pereira.
Ele chama a atenção para fissuras no bem-estar mental da categoria. "Padres se sentem sozinhos, esquecidos", diz. "Essa pesquisa revelou também o perfil de padres muito estressados, sobrecarregados de trabalho, e isso desencadeia uma série de situações. Tem quem celebre cinco, seis missas no fim de semana, além de outras atividades eclesiásticas. Não há tempo de cuidar da saúde."
A origem familiar quase sempre é pobre: quase 70% dos clérigos vêm das classes baixa e média baixa. A Igreja, repara o autor, pode ser vista como porta de acesso para a ascensão econômica e social.
Já nos tempos coloniais do Brasil, de famílias com muitos filhos, "dar um para Deus" e vê-lo se tornar padre garantia certo status social. Havia a vantagem extra de assegurar uma educação de qualidade no seminário, e sem ter que pagar por isso.
Em crises econômicas, a procura por essas escolas de padre tende a aumentar. A África, diz Pereira, ilustra bem o fenômeno: muitos aspirantes ao clero não estão lá por vocação, mas por sobrevivência.
Não que a vida clerical seja propícia ao enriquecimento. A legislação trabalhista não permite que ministros de cultos religiosos sejam assalariados. Sacerdotes católicos recebem um tipo de pensão chamada côngrua. Padre Tomate, por exemplo, ganha o equivalente a dois salários mínimos.
A pesquisa de Pereira revelou ainda que a maior parte do clero nasceu longe dos grandes centros urbanos. Ele mesmo veio da zona rural. A vontade de servir à Santa Sé, lembra, surgiu no início da adolescência, quando ele e os amigos eram figurantes na encenação da Paixão de Cristo que a paróquia local promovia toda Semana Santa nas ruas da interiorana Macatuba (SP).
Padres não são figuras desconectadas do mundo não religioso. Dos ouvidos para esta pesquisa, 83,2% disseram acessar muito a internet, e 94,5% navegam por redes sociais. O gosto por TV também é alto. A maioria gosta de assistir ao noticiário, e tem aquele 1% que é fã de reality show.