Três anos após o início da pandemia de Covid-19, período em que as taxas de mortalidade materna no Brasil dobraram, retrocedendo a níveis registrados há 25 anos, gestantes e puérperas estão mais protegidas contra o Sars-CoV-2. No entanto, voltaram a morrer por causas como hipertensão, hemorragias e infecções, consideradas evitáveis em 90% das situações.
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Os dados preliminares do Ministério da Saúde, compilados pelo OOBr (Observatório Obstétrico Brasileiro), mostram que o número é quase o dobro do registrado em 2019, período anterior à pandemia, quando a razão foi de 57,9 mortes. Em 2020, a taxa oficial foi de 71,9 óbitos por 100 mil nascidos vivos.
Em números absolutos, foram 1.964 mortes em 2020 e 2.941 mortes em 2021. Os dados de 2022 ainda não estão consolidados.
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Só para efeito de comparação, nos Estados Unidos, foram 861 óbitos maternos em 2020 e 1.178 em 2021, segundo o CDC (Centro de Controle e Prevenção de Doenças). Somados, eles representam menos da metade das mortes brasileiras nesse período.
O Brasil é signatário de um acordo firmado com a ONU (Organização das Nações Unidas) em 2015 para reduzir, até 2030, a razão de mortalidade materna para, no máximo, 30 por 100 mil nascidos vivos, ou seja, quase um quarto do número registrado em 2021.
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Relatório do Ministério da Saúde de 2019 obtido pela Folha de S.Paulo mostra que há 95% de chance de o país não atingir a meta. A RMM projetada por técnicos do ministério para 2030 é de 55,6 mortes por 100 mil nascidos vivos.
A reportagem percorreu cidades do Norte do país, região com taxa de mortalidade de 140,8 mortes por 100 mil, a maior do país, ouviu profissionais de saúde, gestores e, principalmente, famílias que perderam gestantes e constatou uma série de problemas na rede de atenção materno-infantil que serão retratados em reportagens ao longo deste mês.
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Roraima liderou o ranking da mortalidade materna em 2021, com 281,7 óbitos por 100 mil nascidos vivos, patamar semelhante ao de países da África subsariana, como Moçambique. Em países desenvolvidos, a taxa fica em torno de 10 por 100 mil.
As mortes de Thais Kauana Rodrigues Diniz, 21, e do seu bebê, em Boa Vista (RR), exemplificam alguns dos gargalos. A jovem vivia numa região de garimpo, estava na 19ª semana de gestação, mas não tinha feito nenhuma consulta de pré-natal. Chegou à maternidade Nossa Senhora de Nazareth, no último dia 12 de janeiro, com dor abdominal e perda de líquido amniótico.
A maternidade funciona de forma improvisada em tendas de um hospital de campanha. O prédio original está em reforma desde junho de 2021. Havia uma promessa do governador Antonio Denarium (PP) de entregar as obras em janeiro deste ano, o que não ocorreu.
No décimo dia de internação de Thaís, foi constatado que o feto havia morrido no útero, segundo a tia, Alessandra Araújo. A morte do bebê se soma a outras 27 registradas na maternidade do início deste ano até 7 de fevereiro. Em 2022, foram 20 óbitos.
"Ela passou dois dias sofrendo após receber medicamento para induzir o parto. Não quis mais comer, a barriga começou a inchar, ela só gemia de dor. Eu pedia socorro, era nítido que ela estava piorando, mas eles diziam que o inchaço era acúmulo de gases. A situação ali dentro é caótica", afirma Alessandra.
Já em estado grave, Thaís foi levada ao Hospital Geral de Roraima, o único do SUS com UTI na capital. Os exames revelaram ruptura uterina e infecção generalizada (septicemia). Ela passou por cirurgia, foi intubada e morreu dois dias depois, em 27 de janeiro.
A maternidade nega que tenha havido negligência no atendimento. Sobre as mortes dos bebês, o governo estadual diz que as causas são diversas, "com parte delas estando relacionadas à falta de pré-natal adequado". Sobre a maternidade, diz que os serviços de reforma do prédio estão na fase final.
Ao mesmo tempo que as causas de morte materna clássicas, como a infecção puerperal que matou Thaís, seguem sem trégua, o país ainda investiga os óbitos por Covid de 2021, ano em que só a doença foi responsável por 52% das mortes de gestantes e puérperas (1.524 de um total de 2.941).
Recente revisão de estudos publicada na revista BMJ Global Health mostra que grávidas com Covid têm oito vezes mais risco de morte em comparação às gestantes não infectadas. Recém-nascidos também apresentam maior chance de complicações nos casos em que a mãe contraiu o Sars-CoV-2.
Uma análise publicada no The Lancet Regional Health Americas, em 2022, identificou ao menos três barreiras que as gestantes e puérperas brasileiras enfrentaram durante pandemia.
A primeira foi a dificuldade de acesso aos testes diagnósticos. A segunda foi encontrar vagas em hospitais. Houve demora média de sete dias entre o início dos sintomas e a internação. Familiares ouvidos na análise relatam que as gestantes foram várias vezes ao mesmo hospital ou em até cinco diferentes instituições antes de serem hospitalizadas.
O terceiro entrave foi o acesso a cuidados intensivos adequados após a hospitalização. Entre 2020 e 2021, 1 em cada 5 grávidas mortas não conseguiu acesso à UTI, e 1 em cada 3 que estava na UTI não chegou a ser intubada, segundo dados do OOBr.
Para a obstetra Rossana Pulcineli Francisco, professora da USP e coordenadora do Observatório Obstétrico Brasileiro, esse fator, associado à falta de profissionais capacitados para a assistência, foi o que mais contribuiu para a alta taxa de mortalidade.
"Se um intensivista trata uma gestante da mesma forma que as outras pessoas, os resultados não serão bons. Para todos os parâmetros , é preciso pensar na mãe e no bebê, intensivistas e obstetras precisam trabalhar juntos."
Do ponto de vista fisiológico, na gestação, a mulher passa por muitas mudanças que podem causar maior reação inflamatória à Covid. Por isso, logo no início da pandemia, o CDC americano alertou para o grave risco que a infecção representava às gestantes, com orientações sobre o cuidado adequado.
O Ministério da Saúde brasileiro também publicou cartilha sobre o assunto, mas, sem uma rede que pudesse acompanhar de perto essas mulheres na atenção primária e encaminhá-las a hospitais com leitos de UTI e profissionais capacitados para atendê-la, o documento teve pouca serventia.
Regiões historicamente vulneráveis sofreram mais. "A gente já previa uma tragédia porque não via uma rede materno-infantil, um sistema de saúde adequado para atender essas mulheres no pré-natal e no parto. Sem uma política que garantisse o acesso, elas ficaram peregrinando por maternidades, por hospitais", afirma a enfermeira Brena Gama, pesquisadora do Instituto Evandro Chagas, em Belém (PA).
Para a médica Fátima Marinho, pesquisadora sênior da Vital Strategies, o alto número de óbitos maternos é o reflexo da negação da pandemia e dos direitos sexuais e reprodutivos na gestão de Jair Bolsonaro. "A falta de uma coordenação nacional junto aos estados e municípios deixou cada um por si. Não houve um trabalho conjunto para proteger as gestantes e puérperas, mesmo já havendo um alerta de que elas representavam um grupo de maior risco."
A médica Rafaela Pacheco, diretora de comunicação da SBMFC (Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade), também cita barreiras de acesso ao aborto legal e à vacina contra a Covid às gestantes e puérperas. "Houve uma negligência criminosa contra essa população. Sabíamos que, com essa desassistência, a mortalidade iria pipocar."
Em 2020, só 55% dos hospitais que faziam aborto legal seguiram atendendo as mulheres, segundo o Mapa do Aborto Legal. Aborto inseguro é a quarta causa de morte materna. Em relação à vacinação contra a Covid-19 em gestantes e puérperas, o Ministério da Saúde chegou a condicionar a imunização à apresentação de prescrição médica, gerando uma baixa adesão nesse grupo.
Segundo análise do OOBr, gestantes e puérperas hospitalizadas com Covid-19 que já previamente vacinadas tiveram menos risco de precisar de UTI (23,5% contra 37,4%), de intubação (4,8% contra 18,8%) e de morrer (3% contra 14,1%) quando comparadas àquelas não imunizadas.
Nésio Fernandes, atual secretário de Atenção Primária do Ministério da Saúde, diz que a abordagem negacionista dada à pandemia pelo governo Bolsonaro fez com que a comunicação de risco na gestação e no puerpério fosse subestimada.
Segundo ele, o ministério vai reativar os comitês de mortalidade materno-infantil nos estados e criar uma rede de vigilância e monitoramento dos cuidados a gestantes e puérperas, especialmente nas regiões com vazios assistenciais à saúde.
O primeiro passo retomar a Rede Cegonha, projeto criado em 2011 para apoiar e financiar ações de atendimento às gestantes e bebês, que havia sido extinto pelo governo Bolsonaro em 2022 e substituído por outro muito criticado por ter deixado de lado toda uma rede multidisciplinar já consolidada.
A gestão anterior da Secretaria de Atenção Primária nega a falta de políticas públicas para frear as mortes maternas. Diz que houve repasses de recursos para melhoria das estruturas das maternidades, elaboração de material técnico sobre o impacto da Covid e apoio na capacitação dos profissionais.