Ao mesmo tempo em que a pandemia teve uma desaceleração recente devido ao avanço na vacinação, o país ainda enfrenta desafios como a baixa cobertura vacinal contra a Covid em algumas faixas etárias, como crianças menores de cinco anos.
Entremeado por histórias de vidas perdidas, o marco de 700 mil mortes também vem acompanhado de uma mudança no perfil da mortalidade pela doença em comparação a outros períodos -com maior proporção de óbitos agora em pessoas acima de 80 anos e imunossuprimidas, por exemplo.
Levantamento do InfoGripe, sistema da Fiocruz que acompanha registros de síndromes respiratórias graves, incluindo a Covid, também aponta mortalidade até três vezes maior por Covid em pessoas não vacinadas em comparação àquelas que receberam doses.
Para especialistas, a vacinação é o ponto-chave para explicar o cenário de desaceleração da pandemia nos últimos meses.
Exemplo disso está nos marcos anteriores da epidemia no país.
Da primeira morte por Covid no Brasil, em março de 2020, até o registro de 100 mil mortes pela doença, em agosto de 2020, passaram-se quase cinco meses. Os demais registros (de 200 mil, 300 mil até 600 mil mortes) ocorreram todos em 2021, sendo dois deles com intervalos de pouco mais de um mês. Desta vez, o país levou mais de um ano e cinco meses para a marca de 700 mil mortes.
O total consolida o Brasil como o segundo país em óbitos acumulados pela Covid, atrás apenas dos Estados Unidos.
Na prática, é como se a população de uma capital inteira, como Aracaju, tivesse sumido do mapa pouco a pouco nos últimos três anos. O total de vítimas da doença também é equivalente à população, somada, de 337 municípios entre aqueles de menor porte.
"É o que chamamos de mortes evitáveis", afirma Marcelo Gomes, coordenador do InfoGripe, para quem o número de mortes poderia ter sido menor se o país tivesse adotado políticas de controle mais cedo.
"Poderíamos, por exemplo, ter tido uma vacinação mais rápida e efetiva, com comunicação mais adequada com a população, sem discussões desnecessárias e ruídos que trouxeram dúvidas e levaram diversas pessoas a não se vacinarem."
Apesar desse atraso e desafios persistentes, a vacinação passou a ter avanços no segundo semestre de 2021 e, desde então, já traz mudanças no perfil de mortalidade pela doença.
Um exemplo são os dados da proporção de mortes por Covid entre as diferentes faixas etárias.
No último trimestre de 2020, antes do início da vacinação, a faixa de 60 a 79 anos respondia pela maior proporção de mortes pela doença (50%), segundo dados do Sistema de Informação da Vigilância Epidemiológica da Gripe (Sivep-Gripe).
A população de mais de 80 anos aparecia em segundo lugar, com 29%, e a de 45 a 59 anos, em terceiro, com 15%.
No segundo trimestre de 2021, com a vacinação já em andamento, caiu a proporção de vítimas tanto de 60 a 79 anos (43%) quanto de mais de 80 anos (13%). A de 45 a 59 anos, por outro lado, subiu (30%).
Já neste primeiro trimestre de 2023, a maior proporção de óbitos é registrada em pessoas acima de 80 anos (43%), seguida pela faixa de 60 a 79 anos (42%). A de 49 a 59 anos responde por 9%.
"À medida que a vacinação foi avançando, observamos uma redução geral no risco [de morte] para todas as faixas etárias, mas para jovens adultos essa diminuição foi muito maior do que para os idosos", diz Gomes.
O motivo é a resposta vacinal menor entre os mais idosos -fenômeno chamado de imunossenescência, quando há um declínio natural do sistema imunológico pelo envelhecimento.
Dados de boletim do Ministério da Saúde mostram ainda que, das mortes registradas por Covid em 2022, 66,5% eram de pessoas que tinham comorbidades, a maioria também idosos.
"O que a gente observa claramente depois que uma grande parcela da população mundial foi imunizada é que a Covid se concentra nos grupos mais vulneráveis. Quem são? As pessoas não vacinadas e, no Brasil, especialmente crianças", diz o infectologista Julio Croda, professor da UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul). "E outro grupo são pessoas que não respondem bem à vacina porque essa proteção não dura muito tempo, que são idosos e imunossuprimidos."
"A Covid-19, agora em 2023, é uma doença completamente diferente de quando a conhecemos em 2020. Naquela época, tive pacientes com menos de 40 anos que, mesmo sem comorbidades, evoluíram para óbitos", relata Alexandre Naime, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Infectologia.
"Com a vacinação, hoje os quadros graves que evoluem para óbito são de pessoas que têm algum prejuízo na resposta imune, como pessoas de extremos de idade e imunossuprimidas", completa ele.
Outro grupo que registrou aumento na proporção de mortes por Covid foi o de menores de cinco anos, reflexo da baixa cobertura vacinal.
"É preocupante", aponta a médica e pesquisadora Fátima Marinho, consultora sênior da Vital Strategies, que lembra ainda que há subnotificação.
Dados do Ministério da Saúde apontam que apenas 48% das crianças de até 11 anos receberam a primeira dose de vacina contra a Covid. Além disso, só 33% tomaram a segunda.
Para Marinho, é preciso reforçar estratégias para recuperar o estímulo à vacinação. "Se não reverter essa baixa cobertura, isso vai afetar muito as crianças, porque já são mais suscetíveis a doenças respiratórias."
Já para idosos, especialistas dizem que uma estratégia seria, além de reforçar a proteção com a vacina bivalente, aumentar a oferta de tratamento antiviral.
Em novembro, o SUS decidiu incorporar na rede o Paxlovid, associação entre os antivirais nirmatrelvir, ritonavir e aprovado pela Anvisa para tratamento de casos leves e moderados em pacientes com maior risco de hospitalização. A rede de saúde também possui outras opções, como o baracetinib, indicado para casos graves.
A prescrição, sobretudo para o Paxlovid, porém, ainda é baixa, diz Naime. "Muitas vezes os médicos nem sabem que os medicamentos estão disponíveis. Depois acabamos internando o paciente com Covid grave."
Segundo o Ministério da Saúde, cerca de 50 mil tratamentos do Paxlovid foram distribuídos aos estados para serem utilizados nos casos indicados. Quantidade equivalente ainda deve ser distribuída, informa.
Em nota, a pasta alerta ainda que, para que a tendência de queda de mortes por Covid se mantenha, é necessário que a população se vacine e complete o esquema vacinal com todas as doses recomendadas.
Desde o fim de fevereiro, o governo realiza uma campanha com a vacina bivalente, que protege também contra a variante ômicron e subvariantes. A ideia é que sejam vacinados grupos mais vulneráveis, como idosos, pessoas imunocomprometidas, gestantes, entre outros.
A medida ocorre em um momento em que dados recentes do InfoGripe, contabilizados até 13 de março, apontavam tendência de aumento de casos, cenário que, segundo Gomes, deve se repetir agora em diferentes momentos.
"Vínhamos com tendência de queda, mas já começamos a observar uma tendência de reversão." Segundo ele, o Carnaval pode ter contribuído, mas não deve ser o único fator. "Nossa hipótese é que isso seja decorrência do ciclo natural da doença", diz o pesquisador, segundo quem um possível padrão sazonal ainda não está bem definido.
Recentemente, a OMS (Organização Mundial da Saúde) chegou a reunir especialistas para discutir a possibilidade de rever o status de emergência global em saúde pela Covid. O grupo, porém, decidiu que era cedo para isso.
Para Croda, os dados mostram que a Covid pode estar no caminho para se tornar endêmica, mas ainda é preciso observar mais o cenário. A doença também tem mostrado novo perfil.
"O que mudou é que está se tornando mais leve de forma geral. Os sintomas são mais brandos, porque a população adquiriu algum tipo de imunidade, e isso de alguma forma impacta na apresentação clínica. Antes a gente tinha muita falta de ar. Agora vemos mais pacientes em leitos de enfermaria, não necessariamente em leitos de terapia intensiva", diz.
"Talvez, no futuro, se o vírus se tornar sazonal, e respeitar um período de maior ocorrência, como o inverno, possamos aplicar a vacina no mesmo período para a população."
As incertezas sobre o futuro da doença reforçam a importância de políticas de vacinação e proteção.
"A Covid não deixou de ser um problema importante só porque [o número de mortes] diminuiu em relação à catástrofe dos anos anteriores", afirma Gomes. "Ainda são valores expressivos, e é uma das principais causas de mortes."