Cerca de 1,6 milhão de crianças no Brasil não receberam nenhuma dose de vacinas DTP, que previnem difteria, tétano e coqueluche entre 2019 e 2021. O dado é semelhante em relação à proteção contra a poliomielite, ou paralisia infantil, no mesmo período. As informações foram levantadas no relatório Situação Mundial da Infância 2023 do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e apresentados durante entrevista coletiva no no Auditório da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), em Brasília-DF nesta quinta-feira (20/4).
O cenário apontado pelo relatório se agrava quando se leva em consideração a imunização completa, ou seja, quando foram aplicadas todas as doses previstas no plano de vacinação. Neste caso, tanto para a DTP quanto para a proteção contra a poliomielite, o número de crianças desprotegidas sobe para 2,4 milhões entre 2019 e 2021.
O relatório aponta que 40% das crianças sem proteção contra difteria, tétano e coqueluche da América Latina estão no Brasil. Além do número considerado alto de pequenos não imunizados, a cobertura vacinal, historicamente alta no país, também amarga queda no período analisado.
“Essas crianças foram deixadas para trás, ficando desprotegidas de doenças sérias e evitáveis. As crianças nascidas pouco antes ou durante a pandemia agora estão ultrapassando a idade em que normalmente seriam vacinadas, ressaltando a necessidade de uma ação urgente para alcançar aquelas que perderam as vacinas e prevenir surtos e a volta de doenças já erradicadas no Brasil, como a pólio”, afirma Youssouf Abdel-Jelil, representante do Unicef no Brasil.
A apresentação dos resultados do relatório teve a participação de membros do Ministério da Saúde, incluindo a chefe da pasta, Nísia Trindade. A ministra destacou que o objetivo é retomar os altos percentuais de cobertura vacinal entre as crianças no país.
“Já tivemos 95% de cobertura em relação a vacinas como a da poliomielite, e agora não chegamos a 60% de crianças vacinadas. Esse quadro tem que mudar. Para isso, de uma maneira muito clara, temos de combater o negacionismo em relação a essa proteção dada pelas vacinas e às fake news que infelizmente têm sido veiculadas de uma forma irresponsável e criminosa”, disse Nísia Trindade.
O cenário nacional acompanha uma tendência global, já que 112 países também tiveram quedas de cobertura entre 2019 e 2021. A pandemia é apontada como um dos fatores que explica esse contexto por ter exacerbado as desigualdades sociais. De acordo com o Unicef, uma a cada cinco crianças não recebeu nenhuma vacina em domicílios mais pobres, sendo que em localidades mais ricas, essa proporção cai para uma criança em 20. A maior taxa de desproteção é percebida em zonas rurais, comunidades indígenas e nas periferias de grandes cidades.
O diretor do Departamento de Imunizações do Ministério da Saúde, Éder Gatti, contextualizou os números de crianças não vacinadas no país nos últimos anos. Segundo ele, a realidade apresenta desafios e a quantidade de crianças desprotegidas é relevante diante do número total.
“O levantamento que o Unicef fez mostra pra gente que o Programa Nacional de Imunizações tem um grande desafio. O Brasil tem, em média, 3 milhões de nascidos vivos por ano. Esse é o grupo que nasce e recebe as vacinas, então estamos falando mais ou menos de 9 milhões de crianças. Ter 1,6 milhão sem nenhuma vacina é um quantitativo grande, um número que não nos orgulha e nos deixa muito preocupados”, disse Gatti durante a coletiva.
Combate à desinformação
Durante a coletiva de apresentação do relatório, a equipe do Ministério da Saúde tratou sobre o combate às desinformações como estratégia para retomar o ritmo das imunizações no país. Questionada sobre médicos que desincentivam a vacinação de crianças, a secretária de Vigilância em Saúde, Ethel Leonor Noia Maciel, disse que a pasta faz reuniões com entidades profissionais para combater esse comportamento.
“Estamos com várias ações, já tivemos uma reunião na Associação Médica Brasileira e nossa próxima ação é com os conselhos federais. Essas pessoas (que desincentivam a vacinação) cometem crimes contra a saúde pública e precisam ser combatidas conforme a lei. O ministério já enviou um ofício para todos os conselhos perguntando sobre as ações que eles estão tomando para combater esses profissionais que estão sendo responsáveis pela ampliação do movimento antivacina no Brasil”, afirmou a secretária.
De acordo com o relatório Situação Mundial da Infância 2023, houve uma queda na percepção da importância da imunização infantil em 52 dos 55 países pesquisados. No Brasil, antes da pandemia, 99,1% confiava nas vacinas para crianças e esse índice caiu para 88,8%. O perfil da queda da confiança entre os brasileiros, no entanto, é diferente do resto do mundo. Enquanto no cenário global a redução foi observada entre mulheres e pessoas com menos de 35 anos, por aqui, a incerteza cresceu mais entre homens com mais de 65 anos.
De acordo com o Ministério da Saúde, o perfil dos que desconfiam das vacinas no Brasil coaduna com o do integrante médio de grupos de desinformação nas redes sociais e da circulação de mensagens de ódio. A secretária Ethel Maciel também responsabilizou a postura do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) para a construção deste cenário.
“A gente tinha mais de 99% de aceitação de vacinas no Brasil antes da pandemia e antes desse último governo que foi porta-voz desse movimento antivacina no Brasil. Isso precisa sempre ser lembrado. Inclusive temos aí um ex-presidente respondendo processo por ligar a vacina contra a COVID à transmissão do vírus HIV. É nesse mundo que chegamos no Brasil, onde tínhamos a maior autoridade falando esse tipo de barbaridade. Responde por processo e espero que possa ser responsabilizado pelo que disse e ter levado várias pessoas à dúvida e desconfiança”, afirmou.
Sugestões do Unicef
Para reverter o quadro de vacinação infantil no Brasil, o relatório do Unicef sugere que o governo identifique e alcance urgentemente todas as crianças, especialmente aquelas que perderam a vacinação durante a pandemia de covid-19; que fortaleça a demanda por vacinas, inclusive construindo confiança; que priorizem o financiamento de serviços de imunização e atenção primária à saúde; e reforce os sistemas de saúde, incluindo investimento e valorização de profissionais de saúde, em sua maioria mulheres.
A busca ativa das crianças que não estão em dia com o calendário de imunizações é um dos pontos preconizados Youssouf Abdel-Jelil. O representante do Unicef no Brasil destaca que é preciso ter urgência nas ações desta natureza para que as crianças consigam recuperar o tempo perdido sem vacinação.
“Uma busca ativa dessas crianças, olhando para municípios e estados com maiores números absolutos de não vacinadas e não imunizadas, é essencial, pois elas já ficaram para trás, e correm o risco de nunca ser imunizadas e protegidas contra doenças evitáveis. É urgente, também, retomar as campanhas de vacinação e estratégias de comunicação voltadas a famílias e profissionais de saúde, mas de forma regionalizada, respeitando a situação específica de cada território”, afirma.