Jornal Estado de Minas

CONTRASTE URBANO

A família que mora há mais de 100 anos em casa agora espremida por prédios



Therezinha Eugênia Pinheiro Lima, de 90 anos, mora há 70 deles em um sobrado na Vila Mariana, bairro de classe média no centro-sul da capital paulista.

Antes dela, o imóvel pertenceu aos avós paternos de Maria Angélica e Adriana, as filhas de dona Therezinha, de modo que a casa guarda memórias da família há mais de um século.





Nos últimos anos, no entanto, Therezinha e as filhas viram todos os antigos vizinhos irem embora, a maioria das casas do entorno serem demolidas e torres de apartamentos do tipo estúdio, com unidades de 16 a 33 m², serem erguidas atrás, à direita e à esquerda do imóvel.

Agora, o sobrado é um ponto sem sol, espremido pelos prédios.

"Das janelas dos apartamentos, jogam de tudo. Já jogaram absorvente, bituca de cigarro, embalagem de sabonete e de comida, garrafas", conta Adriana, sobre o que já recolheu de seu quintal.

Casos do tipo se multiplicam em São Paulo e urbanistas avaliam que devem se tornar ainda mais frequentes com a revisão do Plano Diretor Estratégico do município, aprovada na Câmara de vereadores ao fim de junho (veja detalhes do projeto abaixo).





O relator da proposta, que expande os eixos de verticalização na cidade, discorda dessa avaliação e diz que construir para o alto é a chance de São Paulo ampliar a ocupação nos bairros centrais e cumprir a promessa de ampliar a habitação para baixa renda nas áreas mais bem servidas de transporte.

Assédio imobiliário

"Com a gente, começou em 2010, mas a gente nem acreditava. A gente ria, e pensava: 'Quem vai vender aqui? O seu Pássaro vai vender? Imagina... Ninguém aqui vai vender'", lembra Maria Angélica, de 43 anos e nutricionista.

"E as abordagens nunca são feitas de forma amigável, é sempre na base da ameaça. Eles diziam: 'Se você não vender, vai ficar no meio dos prédios, não vai ter sol. Nós vamos construir o prédio do mesmo jeito e aí, lá de cima, vão jogar de tudo'", conta Adriana, de 55 anos.





A corretora chegou a ficar meses com o carro parado na porta da casa, lembra a também nutricionista.

"Minha mãe não conseguia pôr a chave no portão, que ela vinha: 'Oi, tudo bem? Posso entrar?'. Quando ouvia que não, a conversa mudava de tom: 'Depois que a gente construir, você não vai vender essa casa nunca mais. Nunca ninguém vai querer essa casa, então acho melhor você vender'", diz Adriana, lembrando das conversas com a corretora.


Therezinha Eugênia, de 90 anos, mora há 70 deles em sobrado na Vila Mariana (foto: Vitor Serrano/BBC)

As demolições das casas vizinhas começaram por volta de 2015, contam as irmãs.

"Você só se dá conta do que está acontecendo quando chegam os carros de mudança", diz Adriana.

"É uma coisa que dói na alma, porque ali era a casa do seu Pássaro, a outra era a casa do Malandrino, e eu brincava com os filhos dele. Mas a verdade é que a demolição, de todo o processo, é a parte menos traumática", acrescenta a irmã mais velha.





As obras começaram por volta de 2018, segundo as irmãs, e a família passou a conviver com o barulho ininterrupto das estacas, entrega de material de construção na madrugada e o tráfego de caminhões, que por mais de uma vez destruiu a calçada da casa.

Junto a isso, vieram os abalos na estrutura do imóvel, que sofreu com rachaduras e infiltrações, segundo as irmãs, nunca devidamente compensadas pela construtora.

"Eles não se responsabilizam por nada e, quando você reclama, de novo, você escuta assim: 'Está vendo? Por que você não vendeu?'", conta Adriana.

Questionada sobre os problemas apontados pela família durante as obras, a incorporadora Vitacon, responsável por dois dos prédios vizinhos à casa, informou que "apura os referidos relatos e está à disposição para possíveis esclarecimentos".





Conforme o Código Civil, quando uma construção provoca estragos em um imóvel vizinho, cabe ao responsável pela obra arcar com os custos de reparo, desde que comprovado o vínculo de causa e efeito.


Guindaste ao lado da casa durante obra de um dos prédios do entorno (foto: Arquivo pessoal)

Novos vizinhos

Os transtornos, no entanto, não terminaram com as obras. Depois vieram os novos vizinhos, principalmente estudantes universitários, ou pessoas de passagem, que alugam os pequenos apartamentos vendidos "para investimento", com ganhos por meio de serviços como o Airbnb, de aluguel por temporada. Barulho e lixo jogado pela janela tornaram-se problemas frequentes.

Com relação ao barulho, o principal problema são as festas que, realizadas nos apartamentos minúsculos, tomam as varandas, com conversa e música alta até a madrugada, contam as irmãs.

Reclamar é difícil, diz Adriana, pois alguns dos novos prédios não têm porteiro, apenas portaria eletrônica com um profissional que fica em outro lugar e diz que não pode fazer nada sem saber o número exato do apartamento que está incomodando. A polícia também, quando chamada, muitas vezes não faz nada, afirmam as vizinhas.

Outro problema frequente são os carros que param na frente da casa, bloqueando o carro da família.

Com dona Therezinha aos seus 90 anos, as irmãs se preocupam se isso um dia ocorrer em alguma situação de emergência. "Você reclama e ninguém está nem aí, chama a CET e nada acontece", diz Adriana, expressando sua sensação de impotência.





Apesar de todos os novos problemas, a família não pensa em vender a casa.

'Não é resistir'

Segundo as irmãs, a decisão da família de ficar não é nenhum movimento de resistência.

"Não é resistir. Quando se fala dessa forma, dá a impressão que eles fazem uma proposta muito boa e que a pessoa está resistindo diante de uma oferta irrecusável. Mas não é isso, a proposta é uma porcaria. Com o que eles ofereceram, não poderíamos comprar uma casa de padrão similar em lugar nenhum", diz Maria Eugênia.

"E não é que a gente não quis de forma alguma. Tivemos uma conversa com a mamãe, explicamos a ela o que poderia acontecer, como a casa ia ficar", lembra Adriana. "Foi uma opção dela, ela até se emocionou um dia, dizendo: 'Eu não quero sair da minha casa'. E nós respeitamos essa decisão."





A casa de Therezinha em meio aos prédios, em imagem de satélite (foto: Google Earth)

Cercados

A cerca de 7 km da casa de Therezinha, no bairro de Pinheiros, zona oeste de São Paulo, os parceiros e sócios em um negócio de decoração de interiores, Roberto Cimino e Nelson Amorim, vivem história similar, mas a encaram como uma jornada de fidelidade a seus princípios.

A casa e escritório dos dois na Rua Francisco Leitão é a última em pé, de um conjunto de quatro casinhas geminadas, demolidas para dar lugar a um empreendimento imobiliário.

Além das três casinhas geminadas, outros quatro sobrados do entorno também vieram abaixo, deixando a última casa restante cercada pelo canteiro de obras.

Roberto e Nelson moraram e trabalharam na casa da Francisco Leitão desde 2012 e, ao contrário da família da Vila Mariana, veem a escolha de não vender como um ato de resistência.

"Nós transformamos esse imóvel, fizemos uma bela reforma nele e ficou extremamente aconchegante", conta Roberto. "Então ficamos esse período todo, até que chegou essa condição de exploração imobiliária. Eles já estavam cercando há muitos anos esse local, foram conseguindo a compra de um e de outro, até que chegou a nossa vez."





Para os arquitetos, uma série de fatores pesaram na escolha de não vender: o apego que tinham pelo local, o fato de que em um dos lados da casa será construída uma área verde e, como no caso da família de Therezinha, o valor considerado muito baixo para a compra do imóvel.

"Eles ofereceram em troca do que era nosso escritório, nossa base, o que oferecem no mercado: apartamentos de 30, 28, 18, 14 m². Na contramão do que nós, como profissionais, com a visão que temos do ser humano habitar um espaço físico, acreditamos", diz Roberto.


'Eles já estavam cercando há muitos anos, foram conseguindo a compra de um e de outro, até que chegou nossa vez', diz Roberto Cimino (dir.), ao lado do marido Nelson Amorim (foto: Arquivo pessoal)

Abalo estrutural e nova demolição

Decididos a não vender, os arquitetos permaneceram na casa durante o processo de demolição dos vizinhos e construção e posterior demolição do estande de vendas. A situação se complicou, porém, na etapa de corte do terreno para construção das garagens subterrâneas e da fundação.





"Nossa casa, por ser dos anos 1940, não tem estrutura convencional de concreto com alvenaria, ela é pura alvenaria, se suporta de um tijolo em cima do outro. Então, mesmo com todos os cuidados corretos de construção, a casa foi abalada", conta Roberto.


A casa de Roberto e Nelson em junho de 2023, já com a obra do prédio avançada (foto: Vitor Serrano/BBC)

Diante do abalo estrutural, o casal deixou o imóvel e foi morar temporariamente num sobrado em uma vila próxima à Livraria Travessa de Pinheiros.

"Ficamos ali um ano, até março ou abril deste ano, porque a vilinha também foi demolida", conta Nelson, num exemplo prático da velocidade do avanço imobiliário em Pinheiros e outros bairros tradicionais de São Paulo.





Expulsos pela segunda vez em meio à verticalização acelerada, os arquitetos moram e trabalham agora num apartamento em Pinheiros. Após embates com a incorporadora You,Inc sobre compensações pela reforma da casa e pelo aluguel temporário, chegaram a um acordo que consideram satisfatório.

Procurada para comentar o caso, a You,Inc afirmou em nota: "Referente à obra na Rua Francisco Leitão, a empresa sempre esteve à disposição do entorno, com objetivo de inibir transtornos aos moradores. As partes entraram em acordo e todas as providências estão sendo tomadas."

Mesmo após o acordo, Roberto e Nelson lamentam a mudança acelerada do bairro.

"É uma questão de visão humanista: como fazer moradias para seres humanos dessa forma? Destruindo outros, destruindo todo um entorno e seu modo de vida", questiona Roberto. "É claro que o progresso vai levar a uma movimentação daquele modo de viver, mas isso deveria ser feito com mais cuidado. É assim que a gente encara. Por isso, nós resistimos."





Vila Mariana e Pinheiros lideram demolições em SP

Os casos da família de Therezinha e do casal Roberto e Nelson não são isolados, estão acontecendo em diversos bairros de São Paulo, em meio ao avanço da verticalização.

Vila Mariana e Pinheiros são apenas os exemplos mais gritantes, liderando demolições no município, conforme dados da Secretaria Municipal de Urbanismo e Licenciamento da Prefeitura de São Paulo.

Na Vila Mariana, o valor médio do metro quadrado é de R$ 8.504 em 2023, enquanto em Pinheiros é de R$ 10.207, segundo levantamento da Loft — a título de comparação, o metro quadrado vale R$ 16.839 na Vila Nova Conceição e R$ 5.046 no Sacomã, respectivamente, o bairro mais caro e o mais barato de São Paulo, entre 57 analisados pela startup de imóveis.

Somente nos últimos cinco anos, de 2018 a 2022, a Prefeitura concedeu 1.091 alvarás de demolição na Vila Mariana e 1.063 em Pinheiros, mais do que o dobro de alvarás concedidos na região da subprefeitura de Santo Amaro (503), terceiro colocado da lista.





(foto: BBC)

Por trás desse avanço das demolições — e, consequentemente, da construção de novos edifícios — nos dois bairros, está o Plano Diretor Estratégico (PDE) de São Paulo de 2014, aprovado durante a gestão do então prefeito Fernando Haddad (PT), hoje ministro da Fazenda.

Nabil Bonduki, professor titular de planejamento urbano na USP (Universidade de São Paulo) e relator do Plano Diretor de 2014, lembra que a intenção do plano foi estimular o adensamento populacional em torno dos eixos de transporte público.

Ou seja, aumentar a quantidade de pessoas vivendo perto de estações de metrô, trem e corredores de ônibus, aproximando a moradia das áreas com maior oferta de empregos e diminuindo o tempo de deslocamento urbano.

"Foram incluídas regras que estimulam apartamentos de menor tamanho para ter maior adensamento perto das áreas de transporte coletivo de massa, protegendo, por outro lado, os miolos de bairros", diz Bonduki, em entrevista à BBC News Brasil.





Segundo o urbanista, o objetivo foi dar maior racionalidade ao processo de verticalização, antes dispersa, além de inibir a expansão horizontal da cidade, com o avanço das periferias sobre áreas verdes, em consonância com as diretrizes para combate às mudanças climáticas.


Objetivo do Plano Direito de 2014 foi dar maior racionalidade ao processo de verticalização, antes dispersa, além de inibir a expansão horizontal da cidade, diz Nabil Bonduki (foto: Getty Images)

Margareth Uemura, coordenadora de urbanismo do Instituto Pólis, avalia, no entanto, que o PDE de 2014 falhou na sua intenção de trazer a população de menor renda para morar perto dos eixos de transporte. E que a verticalização em curso não resulta necessariamente em maior adensamento.

"A ideia do Plano Diretor era ter apartamentos que abrigassem pessoas de rendas diversas, mas principalmente incluir a população de menor renda próximo aos eixos de transporte", diz Uemura.

Mas, ao longo dos anos, alterações na lei — principalmente aquelas que permitiram maior número de vagas de garagem — fizeram com que esses apartamentos fossem destinados a uma população de renda maior, que usa o carro e não o transporte público, e consome apartamentos maiores, afirma.





"Esses empreendimentos acabaram sendo feitos demolindo conjuntos de casas de moradores que já estavam há anos em bairros consolidados", aponta a arquiteta e urbanista.

"Ou seja, você está substituindo uma população que morava ali há muito tempo, com seus comércios e serviços, por imóveis vendidos para uma renda mais alta e monofuncionais ", acrescenta.

Questionada sobre os problemas na execução do PDE de 2014, a Prefeitura de São Paulo afirmou em nota que "na capital, uma unidade de habitação de interesse social foi licenciada, em média, a cada três horas pela Prefeitura nas regiões mais bem servidas de transporte desde a aprovação do Plano Diretor".

Em números absolutos, foram 28,9 mil unidades licenciadas entre 2014 e 2021 e 130,9 mil unidades em Zeis (Zonas Especiais de Interesse Social), informou a administração municipal.

Novo Plano Diretor

Bonduki e Uemura concordam na avaliação de que a revisão do Plano Diretor, aprovada em segunda votação na segunda-feira (26/6) na Câmara Municipal de São Paulo, não resolve as deficiências do projeto original.





Segundo eles, a mudança pode, na verdade, acentuar o conflito nos bairros, ao ampliar a área onde a verticalização é permitida.


Manifestante em ato contra a revisão do Plano Diretor em São Paulo (foto: Paulo Pinto/Agência Brasil)

Pelas novas regras aprovadas, o chamado eixo de verticalização — onde não há limite de altura para os prédios — será expandindo dos atuais 600 m a partir de estações de metrô e trem e 300 m de corredores de ônibus para 700 m e 400 m, respectivamente.

Além disso, os prédios poderão ter área construída maior, em relação ao terreno, desde que destinem parte de suas unidades à habitação social e incluam lojas na fachada dos prédios e salas comerciais.

A nova versão do plano também tem regras que incentivam apartamentos maiores — numa tentativa de conter o avanço dos microapartamentos — e com mais de uma vaga de garagem.

"A ampliação da área de verticalização descaracteriza a ideia de ter o adensamento próximo ao transporte coletivo e a proteção aos miolos de bairros", diz Bonduki.





"Da maneira como foi proposto o substitutivo, ele agrava , porque a verticalização será mais permissiva", concorda Uemura.

O vereador Rodrigo Goulart (PSD), relator da revisão do PDE, discorda da avaliação dos urbanistas.

"A proposta apresentada por mim tem justamente o objetivo contrário ao de agravar o conflito nos bairros", disse Goulart por e-mail à BBC News Brasil.

"O PDE de 2014 não conseguiu atingir o seu objetivo inicial, que era levar pessoas de todas as rendas, principalmente as mais carentes, para morar perto dos eixos. Com os incentivos que estamos dando agora para HIS (Habitação de Interesse Social) queremos justamente corrigir essa distorção", acrescentou o vereador.

"Lamento que tais especialistas tenham essa visão distorcida da realidade", completou.

O texto deve ainda passar pela aprovação do prefeito Ricardo Nunes (MDB). A permissão para verticalizar será então debatida quadra a quadra na revisão da lei de zoneamento, que também será analisada pela Câmara.





Individual vs. Coletivo

Para Nabil Bonduki, o conflito entre moradores de casinhas e incorporadoras e construtoras é uma parte natural do processo de transformação das cidades.

"Uma propriedade com baixíssima densidade do lado de uma estação de metrô não está cumprindo a função social da propriedade", diz Bonduki. "Perder esse local pode ser algo ruim para a pessoa, mas esse é um interesse individual. Estamos falando aqui do interesse coletivo", defende.

Já Margareth Uemura, do Instituto Pólis, avalia que há uma disparidade de forças na disputa entre famílias e empresas e que caberia ao Estado proteger a parte mais fraca.

"O pequeno proprietário da casa fica medindo forças com incorporadora e construtora, numa relação totalmente desleal. Então o Estado deveria proteger esse cidadão — não só através da diretriz do Plano Diretor, mas também de todas as regras de uso e ocupação, porque o que vem acontecendo é que os prédios confinam as casas, como estão confinando também várias vilas."


'Ninguém quer mexer nesse vespeiro que é o fato de as construtoras mandarem nesse país', diz Maria Angélica (dir.), ao lado da mãe Therezinha e da irmã Adriana (foto: Vitor Serrano/BBC)

Reportagem do jornal Folha de S.Paulo publicada em junho mostrou que metade das doações de campanha de vereadores de São Paulo veio de pessoas ligadas ao setor imobiliário.





Os políticos dizem, no entanto, que os recursos não interferem em sua atuação na Câmara ou no debate sobre as mudanças no Plano Diretor.

Para a família de Therezinha, há mais de cem anos no sobrado da Vila Mariana, agora cercado por prédios, os moradores antigos de bairros devem ter sua escolha de permanecer respeitada.

"Tenho direito de decidir onde quero morar", diz Maria Angélica. "Ninguém quer mexer nesse vespeiro que é o fato de as construtoras mandarem nesse país."