Na manhã de um sábado de sol, fui despertado com um telefonema do advogado Geraldo Magela Freire, participando-me que um amigo comum nos deixara. Sempre vi na morte um passaporte para a vida eterna. Mas quando ela nos colhe de surpresa, admiti-la torna-se mais difícil, por maior que seja a nossa disposição em aceitá-la.
Aprendi com Guimarães Rosa que a gente morre para provar que viveu. Daí a conclusão de que quem viveu bem será sempre lembrado, pois a morte não é a maior perda da vida.
A maior perda é o que morre dentro de nós enquanto vivemos. E os que amamos nunca morrem, apenas partem antes de nós.
Imbuído desse sentimento, recebi com tranquilidade o comunicado de que Dídimo Paiva nos deixara. Por mais dolorosa que fosse a sua partida, preferi lembrar-me dele tal como sempre foi: autêntico, corajoso, amigo, responsável pelo que dizia e escreveu.
Muitos de seus amigos já exaltaram sua maneira de ser. Para mim, o que ficou dele foi a sua reflexão sobre a política brasileira (“A marcha”, 23/10/53), ao se referir ao “... Brasil traído e vilipendiado pelos homens que se arvoram em arautos do regime democrático. É o grande Brasil que como um náufrago se debate em um mar de dúvidas. É a ideia e a imagem de naufrágio que nos ocorre nessa hora de escândalo, de traições, de rapinagem, mas, antes de tudo, hora de indiferença pelas nossas tradições mais caras e desprezo pelos princípios morais fundamentais da civilização cristã”.
O juízo que Dídimo fazia do nosso país, há 65 anos passados, infortunadamente ainda subsiste: “Brasil onde tudo – independência política real, emancipação econômica, unidade nacional, alfabetização, criação de uma consciência política, libertação da miséria, educação das elites, industrialização – tudo ainda precisa ser resolvido. Eis a grande missão dos moços: solucionar esses problemas ou então desaparecer com eles e o Brasil”.
No discurso que proferiu como presidente da Assembleia Nacional Constituinte (8/10/88), Ulisses Guimarães enfatizou a advertência que Dídimo Paiva fizera quanto à desintegração e à desmoralização pública que infestava a nação num processo enganoso que nada produzira senão “derrubar uma ordem política e sem nada, absolutamente nada, até agora colocar em seu lugar”.
Tal como preconizou o jovem idealista, nascido em Jacuí – dizia Ulysses –, “a vida pública brasileira será sempre fiscalizada pelos cidadãos. Do presidente da República ao prefeito, do senador ao vereador. A moral é o cerne da pátria. A corrupção é o cupim da República. República suja pela corrupção impune tomba nas mãos de demagogos, que a pretexto de salvá-la, a tiranizam. Não roubar, não deixar roubar, pôr na cadeia quem roube, eis o primeiro mandamento da moral pública”.
Comparando a apreensão de Dídimo com a rebeldia cívica de Ulysses Guimarães, é alentador saber que se identificaram na indignação contra o opróbrio, os privilégios, a desfaçatez, as investidas contra os cofres públicos, que se tornaram fatos corriqueiros na história contemporânea.
Felizmente, o que distingue a mocidade da velhice é a capacidade de se refazer. Trata-se de um fato alvissareiro que nos leva a admitir que uma nova geração poderá livrar o Brasil dos riscos iminentes a que estamos expostos. Pois “enquanto as nossas asas nos podem salvar, não tem importância que nos lancemos a todos os abismos...” (“A marcha”. 6/8/54).
Ao contemplar o amigo inerte em seu esquife, tomado de uma saudade prematura, lembrei-me da mensagem que lhe enviei quando ele deixou a sua atividade de jornalista, sem perder a capacidade de sonhar: num mundo em que muitos contam a fama e outros se vendem a ela, encontro em Dídimo Paiva o somatório das mais autênticas virtudes. A capacidade de manter o ânimo quando as circunstâncias são desfavoráveis constitui o apanágio das pessoas de bem. Há homens que amam o poder e outros têm o poder de amar. Esta tem sido a sua perene vocação. (Um Bunker na Imprensa. pg. 163)