Maria Coeli Simões Pires
Advogada, doutora em direito, professora da UFMG e membro
do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais
O estado de Minas Gerais, especialmente, por seu Poder Judiciário, os municípios integrantes da Comarca do Serro e a sociedade em geral celebram, em 2020, o tricentenário da criação da Comarca do Serro do Frio, com sede na antiga Villa do Príncipe, instalada em 17 de fevereiro de 1720. Também, neste ano, comemoram-se os 300 anos do marco fundador da identidade própria de Minas Gerais no Brasil colonial, a criação da Capitania de Minas Gerais a partir da cisão da então Capitania de São Paulo e Minas do Ouro, em 2 de dezembro de 1720.
A ocorrência desses eventos históricos que completam três séculos chama a atenção, nos dias de hoje, para a imperiosa necessidade de uma profunda releitura da historiografia mineira, dando lugar a que a ciência da história, já numa perspectiva trissecular, contribua para situar, em novo patamar, a presença do Serro no processo de construção da chamada civilização mineira.
De fato, nos idos de 1720, ainda sob a designação de Capitania de São Paulo e Minas de Ouro, o atual estado de Minas Gerais, na consolidação da nova territorialidade nacional, compunha-se de quatro comarcas – as de Vila Rica, Sabará e São João del-Rei, instituídas em 1714, e a do Serro Frio, em 1720, coincidindo esta, exatamente, com a definição do novo espaço territorial da Capitania de Minas Gerais, criada meses depois.
É de elementar percepção que a Comarca do Serro do Frio, em perspectiva geográfica, respondia às novas exigências sociais e econômicas da capitania, deslocando-se do seu núcleo povoador inicial, composto por Vila Rica, Sabará e São João del-Rei, em perímetro de curta distância, para estender-se rumo aos dilatados espaços do centro e norte-nordeste do estado.
Basta um olhar de relance sobre o mapa de Minas Gerais para localizar, bem no seu centro-nordeste, o município do Serro, e também sondar a razão pela qual se tornou polo irradiador e centro integrador da civilização mineira. Dali partiam aventureiros rumo à Bahia, seguindo a rota da Cordilheira do Espinhaço, sempre guiados pelo Pico do Itambé, um símbolo perene a 20 quilômetros da sede municipal. Ali também chegavam bandeirantes e desbravadores, tendo as balizas e referências naquela curiosa geografia, ainda no século 17. Que o digam um Fernão Dias Paes Leme, um dom Rodrigo de Castelo Branco, um Matias Cardoso, que ali estabeleceram marcos fundadores naquele século!
Surgiu, depois, o sertanista Lucas de Freitas, que, ali se fixando, legou o famoso “mapa de parte de Minas Gerais”, na verdade, “Caminho para a Bahia”, em que se unem as barras do Rio das Velhas às águas do Rio Jequitinhonha, descortinando-se ao norte o Rio São Francisco, em direção ao Nordeste brasileiro. Toda essa saga histórica teve no Serro sua matriz e centro de irradiação.
Nesta visão do processo civilizatório mineiro, não cabe dúvida de que o Serro exerceu o papel de centro propagador da nascente cultura mineira, sobretudo quando, ligando-se às minas de ouro de Vila Rica, Sabará e São João del-Rei e, também, possuidor de minas de ouro, expandiu sua presença institucional às regiões dos Gerais, ou seja, aos cerrados que pontilham o Norte e o Nordeste do estado, habitados pelos “geralistas”, como os designava João Guimarães Rosa, ou “geraizeiros”, como agora são reconhecidos pela Constituição do Estado de Minas Gerais, que oficializa o Dia dos Gerais.
O esmaecimento da presença do Serro no centro e na mais alta hierarquia da história de Minas Gerais obedeceu a fatores diversos, tanto de infraestrutura ou da própria evolução econômica do país, como, por exemplo, num primeiro momento, a transferência do porto principal de negócios do Brasil de Salvador para o Rio de Janeiro; como pela perda da conexão ferroviária na época em que era um transporte estratégico; ou ainda com a instalação da nova capital do estado, Belo Horizonte, em região limítrofe com o eixo das principais cidades históricas do período colonial e depois imperial, ou seja, Mariana, Ouro Preto, Sabará, São João del-Rei e Tiradentes.
Então, sem competir com suas coirmãs históricas, pois espaço e tempo reservam lugar para cada uma delas em suas singularidades – como Ouro Preto pode afirmar-se como berço cívico da pátria –, neste duplo tricentenário que se celebra em 2020 é chegado o tempo de resgatar uma dívida histórica de Minas Gerais para com seu berço cultural, ou berço-síntese de “mineiros” e “geraizeiros”, que sem dúvida o Serro representa.
Há mesmo hipótese para pensar, ao restituir ao Serro seus direitos históricos, sendo, aliás, o primeiro município brasileiro, em 1938, a ter seu acervo arquitetônico e urbanístico integralmente protegido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), na possibilidade de se retomar no topônimo da cidade a referência à Villa do Príncipe. Aparentemente secundária ou mesmo intempestiva, essa sugestão sobre a nomenclatura do lugar tem a ver, principalmente, com a esplendidez do patrimônio artístico e cultural e da riqueza do conjunto arquitetônico de que dispõe o Serro.
De fato, a denominação sugere a imagem de um dado território, como fica evidente nas cidades coloniais: Ouro Preto sucedeu à Vila Rica, sem perder a referência áurea; Diamantina deixou de ser o singelo Arraial do Tejuco, pertencente então ao próprio Serro, para herdar o nome do cristal brilhante e precioso; ou ainda a então singela São José del-Rei transfigurou-se em Tiradentes, singularizando-se com o heterônimo do herói da Inconfidência; Mariana conservou seu nome sob o signo de Maria.
Constata-se que o nome, sim, muitas vezes ajuda a fazer um lugar, pois pode-se supor que o viajante estrangeiro e o visitante brasileiro jamais deixariam Minas Gerais sem conhecer uma urbe que ostenta o nome tão sugestivo e histórico de Villa do Príncipe. Ou ficariam devedores de uma nova viagem.
Valha esta digressão da toponímia apenas como um exercício, entre muitos outros que poderão ser feitos, em programas e projetos de curto e médio prazos, a fim de relançar o Serro no lugar que ocupa por direito na história da civilização mineira, no mesmo e destacado plano das demais cidades inscritas no circuito histórico de Minas Gerais.
O Serro – leia-se Serro da Villa do Príncipe – não quer nem precisa disputar a palma com nenhuma das coirmãs. Apenas vindica seu lugar de honra no panteão mineiro, com pleno e geral reconhecimento da historiografia oficial.
Neste caso singular, é hora de ajustar a memória à história de Minas Gerais, não permitindo que “os fatos e os feitos se percam no tempo”, como já ensinava Heródoto, conhecido como “o pai da História”.
As neblinas do Itambé não podem ocultar nem fatos nem feitos da gente que povoou a terra principesca e dos que hoje ali vivem e labutam pela continuidade da vida e da história.