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Tancredo, pactos e pandemia

Até o momento, está-se tão somente repetindo teses antigas, superficiais, sem tocar em mudanças profundas e transformadoras


postado em 21/04/2020 04:00


Nelson Missias de Morais
Desembargador, presidente do TJMG
 
 
 
 
Tancredo Neves tinha um sonho, que acalentou na preparação de sua candidatura à Presidência da República e após sua eleição pelo Congresso: liderar no Brasil um pacto social, político e econômico, nos moldes dos célebres Pactos de la Moncloa, liderados pelo rei Juan Carlos, em 1977, após a queda do franquismo na Espanha, que havia mergulhado numa crise sem precedentes. Sua morte trágica, que completa 35 anos neste 21 de abril, frustrou seu projeto.

E por que lembrar do "doutor Tancredo" e da ideia de pacto neste momento? Primeiro, para reverenciar a memória deste mineiro, cuja sabedoria política e capacidade de articulação continuam fazendo muita falta ao Brasil. Segundo, porque a sucessão de pequenas e grandes crises políticas e econômicas dos últimos anos, incluindo dois impeachments presidenciais, culminando com a recente pandemia da COVID-19, parece estar nos levando à perigosa confluência de três crises – a social, a econômica e a política – que nos aproximariam do caos.

A saída pode ser uma ideia de pacto, como queria Tancredo, que teria que ser amplo, como foram os engendrados no Palácio de La Moncloa, e não meramente corporativos ou segmentados, como foram os que nos legaram a Constituição de 1988, que, embora com mais acertos do que defeitos, consolidou posições dos grupos de interesse mais fortes e bem-organizados de então, deixando à parte redefinições que poderiam efetivamente mudar o país.

Com o advento da pandemia do coronavírus, que afeta o mundo inteiro e a cada minuto destrói conceitos que meia hora antes pareciam imutáveis, foi reaberto o debate sobre reformas no Brasil, mas quase tudo o que se falou até o momento está-se tão somente repetindo teses antigas, superficiais, sem tocar em mudanças profundas e transformadoras.

Cobra-se muito do servidor público, por exemplo, e a toda hora aparece alguém propondo cortes radicais ou congelamento de vencimentos, esquecendo-se de que os maiores gastos com pessoal, tanto no plano federal quanto no estadual e em todos os poderes, afetam categorias em geral mal remuneradas, como professores, técnicos diversos e profissionais de setores básicos, como os de saúde e segurança.

Outro segmento abordado com frequência é o Poder Judiciário, falsamente acusado de ser um valhacouto de marajás, quando, em verdade, é composto de servidores públicos, em sua quase totalidade concursados, que prestam inestimáveis serviços à população, em especial aquela mais desprovida de recursos, que muitas vezes só encontra no Judiciário amparo para suas necessidades.

Posso citar como exemplo o Judiciário de Minas, que está presente em 297 comarcas, com seus 1.101 magistrados, 14.151 servidores e 6 mil estagiários, proferindo, em média 1,8 milhão de sentenças por ano. Com tudo isso, o Judiciário mineiro custa a cada cidadão apenas R$ 242,30 por ano. Ou seja, alto rendimento a baixo custo.

Reduzir ou congelar salários de servidores públicos será medida inócua, sob qualquer ângulo em que for examinada. Corajoso seria colocar no debate medidas já clássicas na grande maioria dos países, capazes de equilibrar um pouco mais a concentração de riqueza, que é imoral entre nós.

A taxação das grandes fortunas, já prevista em nossa Constituição (artigo 153, inciso VII) é uma delas. Levantamento da Federação Nacional do Fisco Estadual e Distrital (Fenafisco) revela que há no Brasil apenas 206 (duzentos e seis) bilionários, que somam fortuna de mais de R$ 1,2 trilhão; somente a taxação do patrimônio, com a alíquota de no máximo 1%, e da renda dessas pessoas seria suficiente para garantir aos cofres públicos algo em torno de R$ 116 bilhões. A despeito dessa evidente vantagem, todos os projetos de lei apresentados no Congresso para regulamentar o IGF morreram de inanição, como parece ser o destino também do que tramita atualmente.

Sabemos que a adoção de medidas aparentemente radicais ou que afetem setores específicos só é viável com a construção de consensos, que devem resultar de pactos bem negociados e que respeitem as posições de todos os segmentos, inclusive os menos poderosos. E pactos desse tipo prosperam sob lideranças consistentes, como as do rei Juan Carlos e do primeiro-ministro Felipe González, na Espanha, e, talvez, a de Tancredo Neves. Por isso é fundamental continuar acreditando nas boas ideias.




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