Gaudêncio Torquato
Jornalista, professor titular da USP e consultor político e de comunicação
Ante a atual paisagem, que tipo de Estado mais condiz com nossa democracia?
Ponto um: o Estado nas democracias ocidentais foi surpreendido pela COVID-19 e, com exceção de uma ou outra nação, tem se mostrado incapaz de dar respostas mais urgentes à pandemia. O Estado liberal e o Estado do bem-estar social estão no banco dos réus. Ponto dois: a China, que teria sido o nascedouro do vírus, deu respostas mais eficazes ao massacre pandêmico, em função da rigidez das ordens emanadas pelo poder central – o Partido Comunista –, e acatadas pela população. O Estado autoritário, até o momento, está na vanguarda dos feitos positivos da guerra.
Ante esse quadro, levanta-se a questão: nesses tempos de incerteza e medo, o Estado forte é mais apropriado para enfrentar as crises que o Estado liberal democrático?.
Essa questão é relevante. Como é sabido, temos à frente da economia um perfil comprometido com o Estado liberal, o ministro Paulo Guedes, que prega deixar sob a esfera estatal apenas obrigações em áreas como educação, segurança pública e saúde. Centenas de empresas que contam com a participação do Estado deverão passar à iniciativa privada, existindo para tanto até uma secretaria especial.
Aqui e alhures, porém, discute-se a ideia de dar mais força ao Estado para que possa resolver situações críticas e vitais como epidemias, pandemias, enfim, os desafios de um mundo em plena transformação.
Seria o caso de se imitar a China? Não. O que se vê ali é um capitalismo de Estado, forjado para alavancar os potenciais do país e torná-lo uma potência econômica, se possível a primeira do mundo. A par da alavanca da economia, a China é um Estado autoritário, que sufoca as liberdades individuais e sociais, materializadas na censura ao pensamento, à livre expressão e associação – criação de partidos políticos, por exemplo –, valores incompatíveis com os direitos humanos.
Não é, portanto, espelho para a democracia. Por outro lado, as nações democráticas dão passos, mesmo pequenos, nos caminhos do revigoramento de suas obrigações. Nas crises, o papel do Estado se avoluma, como temos observado neste ciclo da COVID-19.
Um dos papas da ciência política, o sociólogo francês Alain Touraine, prega o aumento da capacidade de intervenção do Estado como forma de uma nação atenuar as desigualdades. Nos moldes em que atua hoje, o Estado tem sido fraco para debelar mazelas.
Essa é a razão pela qual os governos agem no varejo, trabalhando no curto prazo, sem planejamento e com presidentes, como Jair Bolsonaro, envoltos em profunda crise política, trocando ministros, anunciando remédios salvadores antes do atestado da ciência, tentando fazer agrados às bases e angariar apoio para operar a administração.
Mas Estado forte, por aqui, tem sido sinônimo de autoritarismo, arbitrariedade, estrutura burocrática gigante e ineficiente, corporativismo etc. Donde emerge a questão: como encolher o Estado de sua estrutura paquidérmica, dando-lhe capacidade de planejar a longo prazo, sem reformas capazes de deflagrar novos costumes e consolidar as instituições?
Respostas óbvias: realizando as reformas necessárias para otimizar a gestão, nos moldes da trabalhista e da Previdência. Importa avançar com um amplo leque de mudanças.
Com esse escopo, é possível juntar no mesmo balaio os eixos do Estado liberal, do Estado do bem-estar social e do Estado que intervém no mercado quando necessário; maior institucionalização política; racionalidade administrativa; eliminação progressiva do corporativismo; mudança da política de clientelas; adoção da meritocracia; revigoramento dos partidos.
É evidente que essa meta, por nossas plagas, só será alcançada quando as tensões entre os três poderes forem amainadas, com estrita obediência aos trâmites constitucionais, a independência e a harmonia entre eles. Trata-se de um desafio que ultrapassará décadas. Os governos, sem exceção, têm pregado essa cartilha. Mas encontram obstáculos para cumpri-la.
Reformar o Estado não é tarefa para um só governo. O reformador tem inimigos na velha ordem, que se sentem ameaçados pela perda de privilégios, e defensores tímidos na nova ordem, temerosos de que as coisas não deem certo.
Sobram indagações: em quanto tempo o país voltará a respirar com seus pulmões sadios? Como aparar desigualdades com programas que dão vazão a climas concorrenciais? Como resgatar a economia nesses tempos turbulentos? Como chamar de volta os investimentos quando o fantasma da recessão joga o país no fundo do poço?.