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Antonio Pedro Pellegrino
Procurador de Justiça

Consta que Clarice Lispector, consumida pelo câncer, enfiou-se no primeiro táxi que viu pela frente, no Rio de Janeiro, e rumou para o hospital, de onde jamais sairia. Uma vez no táxi, ela começou a fazer o que fazia com maestria nos seus livros – fantasiar. Imaginou-se a caminho de Paris. Não satisfeita em viajar sozinha, convocou a amiga que a acompanhava e o taxista para lhe fazerem companhia no tour parisiense. Como num passe de mágica, o sofrimento arrefeceu, ainda que por breves minutos. Pois o que essa inabalável força criativa de Clarice pode nos deixar de lição é a resistência, isto é, não podemos permitir que esta realidade pandêmica que nos circunda, especialmente trágica no Brasil, destrua aquilo que, segundo Hölderlin, faz do homem um Deus – o sonho.


 
Não é fácil, eu sei. Nos dias atuais, a solidão tem sido um fardo pesadíssimo, pois não surge de nossa livre e espontânea vontade, mas nos é imposta por uma questão de sobrevivência. Em nossas casas, temos que negociar o tempo inteiro com o excesso: a TV nos inunda com as mais variadas futilidades, os profetas de ocasião aumentam consideravelmente, as lives' se proliferam aos montes – talvez numa velocidade maior que o vírus. O resultado desse excesso de oferta é um imobilismo que nos toma em doloroso assalto. Temos muita coisa ao nosso dispor, o que, em outras palavras, significa dizer que não temos nada. Nossas vidas, não raro, se transformam num permanente estado de mãos vazias.

Diariamente, os verbos, sempre conjugados no futuro, nos dilaceram. ''Hospitais serão construídos", "pesquisas serão desenvolvidas", ao passo que nossa vida – e nossa angústia – se desenrola no tempo presente, no aqui e agora. O desespero faz com que nos agarremos a uma palavra feia e suja para atenuar o sofrimento: "comorbidade". Pensamos sempre: ''morreu infectado, mas tinha diabetes''; ''morreu infectado, mas tinha problema no coração''. Esse "mas", para quem está ''limpo'', para quem nada carrega no corpo, é o alento, como se fosse a sentença de que a morte não virá. O problema é que estamos metidos numa batalha inglória contra alguém que não é de carne e osso, e de quem não podemos esperar piedade.

Contudo, sonhar é preciso, mesmo com toda essa catástrofe em que estamos atolados até o pescoço. Sonhar é possibilidade, é construção, é criação e, a partir do momento em que deixamos de sonhar, então nos entregamos de corpo e alma à morte. Se, por um lado, essa solidariedade desenvolvida na base da distância e do isolamento dificilmente mudará o mundo, por outro, uma radical transformação já se operou: a certeza de que a nossa vida não cabe em receitas de bolo, tudo é passível de ser aprimorado, e de que, para evocar Fernando Pessoa, a realidade comporta todos os sonhos do mundo.