Jornal Estado de Minas

A nova Lavras Novas

Conteúdo para Assinantes

Continue lendo o conteúdo para assinantes do Estado de Minas Digital no seu computador e smartphone.

Estado de Minas Digital

de R$ 9,90 por apenas

R$ 1,90

nos 2 primeiros meses

Utilizamos tecnologia e segurança do Google para fazer a assinatura.

Experimente 15 dias grátis

José Alberto Nemer
Artista plástico
 
ecebo pelo celular o vídeo de uma mulher nua, tatuada e bem torneada, se esfregando em um daqueles canos cromados que costumam existir nos palcos de algumas boates das grandes cidades, onde as strip-teasers se enroscam num sobe e desce. Aprendi, recentemente, que isso se chama pole dance, ou dança do cano. A música do disco trepida, as luzes coloridas explodem e os homens fazem uma roda, estendendo os braços e acariciando a bunda da moça. Não fosse a inquestionável integridade do amigo que me enviou e certa precariedade banal das pessoas e do ambiente, não teria acreditado que a cena se passa em... Lavras Novas!
 
Sim, a mesma Lavras Novas, distrito de Ouro Preto, que conheci há 50 anos, quando meu velho Fusca alemão atravessava, corajoso, pedreiras e riachos para chegar à crista de uma montanha, a um dos arraiais mais próximos do céu. Além dessa aventura geográfica, era também uma experiência, ao mesmo tempo, etnológica e estética. Numa época em que a palavra "quilombola" ainda não surgira no mundo das ONGs, os habitantes de Lavras Novas conservavam uma cultura característica, surpreendentemente genuína, originária de antigos quilombos. Até os anos 1940, a maioria dos homens traba- lhava como mão de obra no cultivo do chá Edelweiss, na setecentista Fazenda do Manso, quando o negócio faliu. Depois, com a instalação da usina de alumínio em Saramenha, uma jardineira vinha pegá-los antes do amanhecer e devolvê-los no fim do dia. As mulheres catavam lenha, cuidavam dos filhos e da casa. Ao anoitecer, era comum vê-las em pequenas rodas em torno de uma fogueira, na frente da casa, invariavelmente vestidas com calças compridas sob as saias e um pano farto na cabeça. Era hábito também, entre os homens, usar um boné com um pano atrás, como uma pequena cortina para proteger a nuca. Me pergunto se esse detalhe não vem do uso curvado com a bateia no trabalho nas minas. A título de ilustração, ocorre-me que uma escultura do Aleijadinho, representando um personagem de presépio e que se encontra no Museu da Inconfidência de Ouro Preto, tem a mesma indumentária.




 
A urbanização de Lavras Novas era de grande impacto, com sua singeleza orgânica e harmônica. Uma grande cruz de madeira plantada no gramado servia como um marco de entrada do arraial. Apenas duas fileiras de casas baixas serpenteavam o morro, alargando-se no meio, como uma barriga grávida, para guardar a igreja onde a "xanta" – como dizem – protegia as almas e era a proprietária de todos os terrenos dali. Acabada a rua, acabava a cidade.
 
Embora com algumas diferenças nos detalhes, a tradição popular ostenta uma bela estória do nascimento de Lavras Novas. Como um Romeu e Julieta caipira. Conta-se que um forasteiro chegou a Vila Rica, como tantos outros, sem dinheiro e à procura de ouro. Antes que fizesse fortuna, apaixonou-se por uma linda donzela. O pai da moça proibiu o romance. Numa das brigas entre pai e filha, ela disse uma frase que mais tarde teria um significado surpreendente: "Ó meu pai, por prazer também se morre...". O jovem pretendente percebeu que o ouro, naquelas brenhas, era de aluvião, geralmente incrustado nos barrancos dos riachos. Subiu o morro e foi, como na fábula, beber água mais limpa. Descobriu novas lavras. Recrutou os escravos libertos nos quilombos das redondezas e propôs-lhes sociedade. O lugarejo se fez rapidamente, com todas as casas no mesmo padrão. A moça fugiu e foi-se encontrar com ele. O pai, furioso, colocou a cabeça do rapaz a prêmio. E, numa emboscada, ele foi morto. A moça, desesperada, suicidou-se. O pai, arrependido, teria enterrado os dois corpos no meio do arraial e erigido a igreja, dedicada a Nossa Senhora dos Prazeres.
 

Um dos personagens típicos do lugar era João Paulino, um negro magro, alto e bom. Sustentava a família com os vasos de xaxim que fazia. Mas era, sobretudo, conhecedor profundo das tradições e práticas religiosas de uma comunidade que se formou na mistura étnica dos tempos do Ciclo do Ouro e que permaneceu praticamente fechada entre as montanhas até os anos de 1960. Sua figura era cercada de muito respeito e uma pitada de medo. Corria a lenda de que o punho de sua bengala era re- cheado – como era costume dizer – de pó de defunto. Ele explicava que aquilo era seu apoio para a co- luna quebrada e arma para enfrentar o mato escuro. A casa de João Paulino ficava no alto, aos pés do cruzeiro, como uma sentinela. Era de lá que ele, a mulher, os filhos e netos tinham o costume de controlar os forasteiros. Ninguém entrava ou saía de Lavras Novas sem que eles soubessem. Não por      desconfiança, mas pelo gosto hospitaleiro da novidade. A casa sempre foi acolhedora.




Ingenuidade e capricho perpassavam tudo. Quadros de santos e retratos de família espalhados pelas paredes. Móveis cobertos por panos rendados e cortinas de chita. Flores naturais e de plástico se misturavam com alegria. Às vezes, depois de ter passado o dia em Lavras Novas, não dava tempo de fazer-lhes uma visita. Então, alguém da família me cercava à saída, com um presente entre as mãos: dois ovos. Um dia, da janela do carro, argumentei com dona Conça, a matriarca, que não teria tempo para um café. Ela então                 respondeu: "Mas demora pouca também é bão"!.
 
Hoje, não há mais João Paulino nem aquela Lavras Novas. Como não reconhecer o fluxo contínuo das mudanças? Buscamos mesmo a promovê-lo, pois é parte indissociável da vida criativa. Mas algo choca nessa metamorfose, nessa mítica Perda do Paraíso. O coração não entende e fala mais alto, afastando aqui o estigma de um mora- lismo barato. A perda em si pode não ser lamentável, mas a mediocridade do que vem substituir, sim. Nesse caso, como não concordar com Fernando Sabido, que comentara: "Antigamente, as coisas eram ruins... mas foram piorando".
 
Um dia, me assustei ao ver o arraial querendo parecer a Rua das Pedras de Búzios. As casas de época que ainda resistem, como envergonhadas, transformam-se numa espécie de refúgio sitiado, de onde se assiste às invasões bárbaras do lugar, com os carros de som, as cabines-duplas de vidro preto, o enxame de motos e quadriciclos, as pousadas de muro alto, as casas de veraneio com portão eletrônico e concertina, as variadas versões de uma arquitetura delirante. Fico imaginando em qual dessas casas a mulher do vídeo se exibia. Minha Nossa Se- nhora dos Prazeres, será que, em Vossa magnânima transigência e misericórdia, não terá exagerado um pouco em Vossos domínios? 




audima