Wilson Campos
Advogado, presidente da Comissão de Defesa da Cidadania e dos Interesses Coletivos da Sociedade da OAB-MG e delegado de prerrogativas da OAB-MG
No meio de uma chuva de contradições se encontra o cidadão. Sem saber em quem acreditar, ele segue sua vida. De manhã, pega o ônibus lotado. No final do dia, ao voltar do trabalho, o transporte coletivo parece uma lata de sardinha, todos juntinhos, aglomerados. De pé, pela vidraça do ônibus, ele vê centenas de lojas fechadas e com placas de aluga-se e vende-se. Os bares e restaurantes, que antes iluminavam e davam vida às ruas e avenidas, estão fechados.
No percurso de uma hora, cansado e com as pernas doloridas, o cidadão tenta se equilibrar dentro do ônibus, cada vez mais lotado de pessoas que usam máscaras, mas que não sabem explicar o motivo de tantas contradições por parte das autoridades municipais, que decretam horários e medidas sanitárias para certos setores e nem se preocupam se o trabalhador vai e volta com segurança.
No ônibus atafulhado, apertado, abarrotado de pessoas, o coronavírus não ataca; nas filas imensas em portas de bancos também não; nos supermercados cheios de consumidores, nem pensar. Já nos bares e restaurantes, com mesas distantes e prontas para bem servir, com assepsia e cuidados, a COVID-19 é perigo iminente. Ora, sinceramente, essas contradições indignam todos, profundamente.
Portanto, cabe à prefeitura responder onde está o nexo causal das medidas decretadas, posto que, a rigor, o nexo de causalidade seja um requisito para descobrir quais condutas, positivas ou negativas, deram causa ao resultado previsto em lei. Ou seja, para se afirmar que alguém provocou um determinado fato, faz-se necessário estabelecer a ligação entre a sua conduta e o resultado gerado; estabelecer a relação entre uma causa e sua consequência; e verificar se de sua ação ou omissão adveio o resultado.
Também cumpre à prefeitura, em bom serviço público a ser prestado à sociedade, sem tirania e sem autoritarismo, mas democraticamente, informar a concausa preexistente nos setores obstados de trabalhar com regularidade e se o exercício de determinadas atividades contribuiu de forma concorrente ou não para a eclosão da doença, configurando-se o nexo de causalidade possível de gerar responsabilidade civil.
Caso as autoridades não tenham respostas científicas alinhadas às teorias jurídicas e estejam apenas cogitando riscos, a responsabilidade imputada aos prejudicados deixa de existir, pois, segundo a teoria da causalidade adequada, haverá responsabilização quando o ato do agente é potencialmente apto a produzir os efeitos danosos. A pergunta é: por que bares e restaurantes são proibidos de vender bebida alco- ólica, têm horários predeterminados para funcionamento, são considerados motivadores de aglomeração e contaminação, e ônibus lotados, supermercados cheios e filas gigantescas nas portas dos bancos não representam perigo à luz do decreto municipal?.
A razão legal e sanitária para as situações acima colocadas precisa vir a público. Numa e noutra condição, o nexo causal deve ser apontado, sob pena de se estar privilegiando uns em detrimento de outros ou responsabilizando alguns e isentando muitos. Nesses casos, se não for possível averiguar em que proporção cada um dos elementos participou do evento danoso, presumir-se-á que, havendo mais de uma causa adequada e não se sabendo quais delas foi predominante para a ocorrência do efeito lesivo, haverá solidariedade entre elas.
Sem querer esgotar o assunto, complexo, prolixo e difuso, resta notar que, noutro norte, já surgem controvérsias nos tribunais a respeito da questão do nexo causal da COVID-19, se pode ou não ser considerada doença ocupacional ou do trabalho. No entanto, independentemente de analise jurídica pontual, sabe-se, sem ineditismo, que o artigo 157 da CLT dispõe que "cabe às empresas cumprir e fazer cumprir as normas de segurança e medicina do trabalho, assim como instruir os empregados, através de ordens de serviço, quanto às precauções a tomar no sentido de evitar acidentes do trabalho ou doenças ocupacionais".
De sorte que medidas de segurança precisam ser implantadas, sem, contudo, isso implicar fechamento de negócios, causar desemprego e gerar pânico. O nexo causal da doença só existirá se a forma como o trabalho é executado tiver relação com o adoecimento. Daí as precauções severas necessárias por parte das empresas, que devem comprovar medidas de prevenção adequadas, mesmo porque, numa pandemia o vírus pode estar presente em qualquer lugar, mas, ainda assim, precisa ser identificado e o vínculo e o nexo comprovados.
As discussões decorrentes da insegurança jurídica causada pela pandemia tornaram-se relevantes, sob diversos aspectos, principalmente quanto à configuração da COVID-19 enquanto doença ocupacional. Tal problemática se deu em razão do artigo 29 da medida provisória 927/2020, que possui redação semelhante ao parágrafo 1º, alínea d, do arigo. 20 da Lei 8.213/1991, cuja tratativa remete ao entendimento de que não são considerados ocupacionais os casos de contaminação pelo coronavírus (COVID-19), exceto mediante comprovação do nexo causal. Ora, data venia, não resta dúvida acerca da dificuldade da produção de tal prova, notadamente em razão da facilidade com que o referido vírus se transmite, tornando tal constatação inviável, mormente no ciclo de transmissão sustentada ou comunitária.
Assim, diante do imbróglio trabalhista e social, o Supremo Tribunal Federal (STF) suspendeu a eficácia do referido artigo 29, mas não decidiu que, existindo a contaminação do empregado pelo vírus, automaticamente haveria o reconhecimento desta como doença ocupacional. O STF apenas isentou o empregado do ônus de demonstrar que a contaminação ocorreu no ambiente de trabalho. Conclusão: a caracterização ou não da COVID-19 como doença ocupacional deve ser examinada mediante caso concreto, tomando como parâmetro o cumprimento dos protocolos sanitários e as medidas tomadas pela empresa com o propósito de afastar a contaminação.
Em suma, diante de todo o exposto, o que se está a dizer é que não são possíveis dois pesos e duas medidas no Estado democrático de direito, muito menos tratamento diferenciado e desigualdade no enfrentamento da lei. O que se está a fazer é proteger o direito ao contraditório da população. Nesse sentido, defender a sociedade das arbitrariedades que, volta e meia, grassam por Belo Horizonte torna-se uma obrigação social de todo e qualquer cidadão.