Reginaldo de Souza Silva
Coordenador do Núcleo de Estudos da Criança e do Adolescente da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Neca/Uesb)
pós um ano em que as aulas presenciais foram suspensas por causa do vírus altamente contagioso e letal para a população, notadamente, uma parcela vulnerável, o Brasil, sob a decisão unilateral da Justiça, decidiu que era o momento da reabertura das escolas e de retomar suas atividades de forma presencial. Essa seria uma medida normal e até desejada se não estivéssemos, de norte a sul do país, atravessando a pior fase de contágio e de mortes por COVID-19 e à beira de um colapso do sistema de saúde. Na semana de carnaval, o Brasil chegou a 240 mil mortos e manterá uma média de um brasileiro morto a cada minuto do dia.
Como, em um cenário como esse, a sociedade brasileira poderia achar normal e aceitável abrir as escolas, colocando em risco não apenas as crianças (faixa etária com baixo índice de óbitos), mas grande propagadora do vírus porque, em geral, é assintomática, mas, principalmente as camadas da po- pulação mais vulneráveis às formas mais graves e letais da doença?
Segundo a Constituição Federal de 1988, o di- reito à vida é o direito mais importante. No entanto, ao que temos assistido desde o começo da pandemia é que para uma grande parcela da população brasileira esse direito não está sendo garantido. O aumento dos índices de desemprego, desigualdade social e violência, o sucateamento da saúde etc., associados à suspensão do pagamento do auxílio emergencial e à negação da gravidade da pandemia, são manifestações claras desse desprezo pela vida de uma determinada parcela da sociedade brasileira, a mesma que está sendo contaminada e morrendo sufocada aos montes em casas ou nos hospitais superlotados.
Apesar de fartamente comprovada a ineficácia do retorno às aulas presenciais em vários países e recentemente nas cidades de Campinas (SP) e Curitiba (PR), juíze(a)s, desembargadore(a)s e representantes de direções de sindicatos de escolas privadas insistem em negar as evidências e colocam a saúde dos/as aluno(a)s e as vidas dos profissionais da educação em risco.
É claro que sabemos o que significará para toda uma geração de escolares esta pandemia; não somos cegos em relação a isso. Porém, seria papel da Justiça determinar o retorno às aulas? Teria ela a competência para saber, em uma crise sanitária, qual a melhor forma e momento de retornar as aulas? Será que o lucro, travestido em discursos de garantia de educação como prioridade, justificaria a normalização do adoecimento ou da morte? Quem tem direito à vida? Seria esse direito menor do que o de as escolas privadas falirem?
Parte da sociedade tem demonstrado des- respeito às normas básicas de vigilância sanitária. Aliado a essa falta de empatia e solidariedade também tem o cansaço e o estresse do isolamento social de outra parte e a falta de recursos para sobrevivência de uma parcela significativa da população, agravado pela ausência de uma política pública séria para tentar reduzir os danos da pandemia, que tem levado a sociedade brasileira a achar que está livre dos prejuízos do adoecimento por COVID-19 e do luto coletivo que as mortes, às centenas de milhares, estão provocando. Mesmo que retomemos a uma pseudonormalidade, os “ecos” psicológicos, sociais, afetivos continuarão a reverberar nas vidas dos sobreviventes do vírus. E quanto menos se fizer hoje, mais alto esses ecos nos assombrarão.
Retornar às aulas presenciais agora, portanto, não é apenas mais uma ação precipitada e anticientífica como outras tantas que temos visto serem tomadas no país. O retorno às aulas é um crime! Um crime sanitário, pois aumentaremos a circulação de aluno(a)s e, consequentemente, lotando ainda mais os transportes públicos e os postos de saúde, que já estão com seu atendimento no limite. É um crime ético, pois sabemos que o retorno, apesar de se basear no discursos da inevitabilidade, na verdade, encobre iminência da falência de muitas instituições privadas com a saída em massa da classe média de suas “fileiras” quando o ensino on-line passou a ser adotado. É um crime político, pois apenas um lockdown poderia, neste momento, garantir que o sistema de saúde não entrasse em colapso e que os gastos com a saúde pudessem, enfim, ser destinados aos atendimentos prioritários, salvando vidas, não apenas do agravamento da COVID, mas também de outras tantas doenças e traumas causados por acidentes e doenças. É um crime pedagógico, pois, ao contrário do que muitos imaginam, em breve as escolas terão que fechar suas portas outra vez, interrompendo o processo educativo e, depois, reabrir de novo, fechar outras, e assim sucessivamente, interrompendo e recomeçando várias e várias vezes, resultando em descontinuidades e não aprendizagem, de forma muito mais prejudicial do que se estivessem permanecido em casa.
Em tempos de pandemia ou não, o direito à vida é a prioridade! E vida plena. O que implica sim, escolas que possam, com segurança sanitária, ética, política e pedagógica, garantir a qualidade da aprendizagem. Falsear práticas escolares, alternando atividades entre presenciais e remotas, com salas, materiais, recursos on-line inapropriados, impossibilitando, inclusive, a efetivação real da cultura de crianças e jovens de interação é também retirar da vida uma das dimensões essenciais do processo de humanização.
Por fim, vale lembrar que o direito à vida é um bem coletivo! Perguntamos, portanto, aos excelentíssimo(a)s juíze(a)s, desembargadore(a)s, às direções de escolas e sindicatos particulares (e aos gestores públicos): estas seriam mesmo a hora e as condições para o retorno às aulas presenciais?. Você levará seus filho(a)s e/ou netos para a escola sem a sombra de nenhum medo dos riscos? Pensem sobre isso!