Mayra Cardozo
Advogada especialista em direitos humanos e penal, também é mentora de feminismo e inclusão e líder de empoderamento
O julgamento do processo de difamação movido pelo ator Johnny Depp contra sua ex-parceira Amber Heard, à primeira vista, pode ser algo bem específico, mas que nos faz refletir sobre vários aspectos em torno da violência doméstica e da necessidade de conciliação, de um processo penal que reconheça a mulher como um sujeito a ser protegido como ré, vítima ou condenada na perspectiva processual.
O objeto do julgamento que está ocorrendo no Caso Johnny Deep x Amber Heard é uma ação de indenização cível decorrente de perdas e danos proposta por Johnny Deep contra a ex-mulher. Ele está pedindo US$ 50 milhões como reparação por danos sofridos à sua imagem.
Isso acontece porque, em 2020, o jornal inglês The Sun publicou artigo que apresentava Johnny Depp como um marido violento. Após isso, ele processou o jornal por difamação, mas perdeu a ação, já que a Justiça britânica considerou que as agressões contra a ex-mulher tinham sido comprovadas.
Diante desse cenário e, em especial, ao artigo do The Washington Post, Johnny Depp ajuizou a presente ação alegando estar sendo difamado por Amber Heard. Na ação, ele argumenta ter sido vítima de violência e que sua ex-mulher sofre de transtorno de personalidade Borderline. Entre outras coisas, ele também alegou que ela o agrediu fisicamente e defecava na cama, e que o filho nascido de barriga de aluguel era de outra paternidade.
Amber Heard contestou a ação e fez um pedido de reconvio pleiteando uma indenização no valor de US$ 100 milhões. Segundo Amber, ela é uma sobrevivente de violência doméstica. Reafirmou que foi diversas vezes agredida física, moral e psicologicamente, além de detalhar diversos episódios de agressão durante o uso constante de cocaína por Depp, e também afirmou ser vítima de violência sexual quando ele introduziu uma garrafa em sua genitália.
Os Estados Unidos são um dos países mais violentos do mundo para mulheres. Os dados demonstram que uma em cada quatro mulheres sofre violência doméstica, e uma em cada seis mulheres sofre violência sexual em algum momento de sua vida.
Isso nos mostra que, assim como o Brasil, estamos falando de um país extremamente patriarcal e misógino. É por isso que conseguimos observar semelhanças desse julgamento com julgamentos brasileiros nos casos de violência doméstica e sexual contra mulheres.
Posso, até mesmo, citar algumas semelhanças no julgamento de Johnny Depp com outros julgamentos que envolvem violência de gênero, independentemente do mérito: Johnny Deep alegou que a ex-mulher tinha desvios graves de personalidade – como o transtorno de personalidade Borderline –, como forma central da sua defesa. O objetivo era afirmar que Amber era violenta e que ele que era a vítima da agressão. Inclusive, durante o julgamento, ele trouxe uma psicóloga como testemunha para que pudesse afirmar isso.
Essa é uma alegação clássica dos agressores na maior parte dos casos em que se discute violência do gênero – ou seja, nada melhor do que trazer a velha ideia de “mulher louca e agressiva” como forma de vitimização.
A argumentação centrada no questionamento da sanidade da mulher como ponto central vai em conformidade com uma das mais tradicionais formas de opressão contra mulheres: o gaslighting.
Depp argumenta que o uso e abuso de álcool e drogas era causado por ele ser vítima de um relacionamento abusivo por parte de Amber – trazendo mais um traço comum do patriarcado, uma vez que a mulher “seria a principal responsável por todos os males causados à humanidade”. Ou seja, ela também seria a responsável pelo vício dele em drogas.
Outro argumento é a suposta falta de fidelidade de Amber para macular a sua imagem como “esposa”, trazendo outra característica comum da sociedade patriarcal, que é destruir a imagem da vítima porque ela seria uma “mulher vulgar”. Da mesma forma que, no caso da Mariana Ferrer, trouxeram fotos dela com conotações sexuais como uma forma de destruir a imagem dela no julgamento e, de alguma forma, “justificar as agressões” ou a vitimização do agente.
Na maior parte das vezes, é muito difícil comprovar a ocorrência de uma violência de gênero, já que muitas vezes a mulher esconde os hematomas por conta da vergonha e do medo. É difícil ter testemunhas oculares e as provas obtidas em meios eletrônicos podem ser manipuladas, ou seja, é difícil atestar sua veracidade. Se é difícil essa comprovação na violência física, imaginemos na violência psicológica.
De um modo geral, no Brasil, temos observado uma mudança de postura em relação à absolvição por fragilidade probatória. Tem se dado prevalência à versão da mulher, sob o argumento de que, na maioria das vezes, o delito no âmbito doméstico não conta com testemunhas presenciais. Demonstrada a ocorrência de lesões na mulher, a palavra da mulher tem peso probatório grande.
Essas iniciativas vão de encontro à Lei Mariana Ferrer, cujo objetivo é proteger as vítimas de crimes sexuais de atos contrários à sua integridade moral e psíquica no curso do processo judicial.
Além disso, especifica que, durante as fases de instrução e julgamento do processo, ficam vedadas as manifestações sobre fatos relativos à pessoa denunciante que não constem nos autos – como, por exemplo, a acusação de traição de Amber. Além disso, também fica vedada a manifestação sobre o uso de linguagem, informações ou material ofensivo à dignidade do denunciante ou de testemunhas.