Jornal Estado de Minas

João, Aldir, Jô, Gal, Rolando...

Ricardo dos Reis
Especialista em educação musical pela UFMG 

Meus alunos, com quem sempre aprendi (“Mestre não é só quem ensina, mas aquele que, principalmente, aprende.”), pedindo-me exemplo de paradoxo, apontava-lhes o Palácio da Liberdade cercado de grades por todos os lados. Alguns, mais perspicazes, esboçavam no sorriso maroto o entendimento dessa palavra, que, por si só, traz um mistério profundo na própria grafia. 



Aproveitava então o momento, e introduzia, melhor, emendava o empréstimo linguístico tão em voga denominado “insight”, explicando-lhes o que haviam acabado de vivenciar: a compreensão súbita de algo em um dado momento. Acrescentava-lhes, ainda, que a intuição era fator preponderante na vida, podendo a ciência levar tempo, centenas e milhares de anos,  sem conseguir, talvez, desvendar-lhe o porquê. 

Era uma daquelas aulas em que professor e aluno aprendem e ensinam juntos, devido ao encantamento, instante mágico que dificilmente se repete e que, talvez, apenas esta nobre profissão propicie.

Certa vez, em outra aula, cujo tema central era a palavra antítese (dia/noite, claro/escuro, triste/alegre, choro/riso, vida/morte…), determinado aluno, interrompendo, mandou a seguinte pergunta: “Professor, o senhor tem medo da morte?”. Pouco desconsertado com leve desvio do assunto, mas percebendo a importância da indagação, respondi prontamente que sim, retornando imediatamente ao tema. 

Atualmente, mais adulto e arguto, acho que teria ido mais fundo na resposta àquele aluno que hoje me desperta o artigo. Ter-lhe-ia (desculpe a mesóclise, tão fora de moda!) acrescentado: sim, tenho. Talvez porque não esteja preparado para ela. Talvez porque ame muito a vida, apesar de todos os pesares. Talvez por saber, como disse o poeta, que ‘viver é muito perigoso’, pois implica coragem. Talvez por saber que ‘morrer é fácil, viver é difícil (talvez, talvez  porque quem isto falou até então não havia morrido, como quem aqui fala também não morreu). 



Como vê o caro leitor, vai aqui este artigo se locupletando do advérbio “talvez”, visto que, certeza, verdade absoluta, como o assunto requer, haverão sempre de suscitar dúvidas. Teria ido adiante, citando como exemplo meu pai (hoje com 95 anos), cuja indesejada das gentes nunca o amedrontou. A exemplo dele, meu pai, vários, milhões de pessoas no mundo que a ela, a morte, antítese da vida, não temem. Dela tenho medo, sim. Ainda não aprendi a lidar. Dela, ao menos por enquanto, não aprendi a gostar. 

Teria dito mais ao meu aluno:  que, quando se despede da vida alguém por quem se nutre admiração, que o fez e o faz se emocionar, chorar de alegria, chorar de tanto rir   (olha aí a ironia paradoxal!), que não lhe faz, mas sobretudo lhe ensina a pensar, alguém a lhe mostrar que a vida sem arte, sem humor, talvez não valha a pena… Ah, vá lá! Quando isso acontece, tornamo-nos apequenados perante a vida. Um passo de tristeza nos invade a dança, tornando escorregadiço o salão. São tantas viagens vida afora, tantos livros lidos e sons guardados na memória... “A vida é a arte do encontro, embora haja tantos desencontros pela vida.” “Era preciso fazer da vida uma procura, da procura um encontro...” “Da queda, um passo de dança.” Enfim, alguém como João Gilberto, Aldir Blanc, José Eugênio Soares, o genial e querido Jô, Gal Costa, Rolando Boldrin, entre outros, quando alguém assim se vai, junto vai um pedaço de nós, morremos um pouco. Que a vida, sem  Jôs, Joões, Sous(z)as, Silvas e Marias, que passaram pelo mundo tornando-o melhor, vai pouco a pouco perdendo o viço. Vai pouco a pouco abrindo o bico.