Sacha Calmon
Advogado tributarista, doutor em direito público (UFMG). Coordenador do curso de especialização em direito tributário da Faculdades Milton Campos, ex-professor titular das faculdades de direito da UFMG e da UFRJ. Ex-juiz federal e procurador-chefe da Procuradoria Fiscal de Minas Gerais. Presidente honorário da ABRADT e ex-presidente da ABDF no Rio de Janeiro. Autor do livro “Curso de direito tributário brasileiro” (Forense)
Arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) é a denominação dada no direito brasileiro à ferramenta utilizada para evitar ou reparar lesão a preceito fundamental resultante de ato do poder público (União, estados, Distrito Federal e municípios), incluídos atos anteriores à promulgação da Constituição.
No Brasil, a ADPF foi instituída em 1988 pelo parágrafo 1º do art. 102 da Constituição Federal, posteriormente regulamentado pela Lei 9.882/1999. Sua criação teve por objetivo suprir a lacuna deixada pela ação direta de inconstitucionalidade (Adin), que não pode ser proposta contra lei ou atos normativos que entraram em vigor em data anterior à promulgação da Constituição de 1988. O primeiro julgamento de mérito de uma ADPF ocorreu em dezembro de 2005.
As principais características da ADPF são:
Legitimação ativa: É a mesma prevista para a ação direta de inconstitucionalidade (art. 103, I a IX, da Constituição federal, art. 2º da Lei 9.868/1999 e art. 2º, I, da Lei 9.882/1999).
Capacidade postulatória: A exemplo da Adin, alguns legitimados para ADPF não precisam ser representados por advogados, já que detêm capacidade postulatória.
Liminar: A ADPF admite liminar, concedida pela maioria absoluta dos membros do STF (art. 5º da Lei 9.882/1999). A liminar pode consistir na determinação para que juízes e tribunais suspendam o andamento de processos ou de efeitos de decisões judiciais, ou de qualquer outra medida que apresente relação com a matéria objeto da ação.
Informações: O relator da ADPF poderá solicitar informações às autoridades responsáveis pelo ato questionado. Na ADPF, admite-se a figura do amicus curiae.
Efeitos da decisão: A decisão da ADPF produz efeito erga omnes (contra todos) e vinculantes em relação aos demais órgãos do poder público. Os efeitos no tempo serão ex tunc, mas o STF poderá, em razão da segurança jurídica ou de excepcional interesse social, restringir os efeitos da decisão, decidir que essa somente produzirá efeitos a partir do trânsito em julgado ou de outro momento futuro que venha a ser fixado. Decisões nessa linha excepcional exigem voto de dois terços dos membros do STF.
ADPFs significativas pelo conteúdo:
ADPF 54: protocolada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde, questiona a ilegalidade da interrupção voluntária da gravidez em fetos anencéfalos. Declarada procedente. A corte declarou que a mãe tem direito de interromper a gravidez, em última “ratio”.
ADPF 132: protocolada pelo então governador do estado do Rio de Janeiro Sérgio Cabral Filho, questiona o não reconhecimento de uniões civis entre casais homoafetivos por parte de órgãos do poder público. Declarada procedente. A corte decidiu que os casais homoafetivos têm direito de acesso aos órgãos públicos e à prática de atos comuns aos casais heteroafetivos.
ADPF 186: protocolada pelo Partido Democratas, que visava à “declaração de inconstitucionalidade dos atos do Poder Público que resultaram na instituição de cotas raciais na Universidade de Brasília – UnB”. A arguição foi julgada improcedente pelo STF.
Aduz José Afonso da Silva: “poderá ser fértil como fonte de alargamento da jurisdição constitucional da liberdade a ser exercida pelo Pretório Excelso”, relativamente à figura da arguição de preceito fundamental (barreira). Deste ano a decisão do ministro Gilmar Mendes afastando óbices ao combate à fome e à pobreza.
As arguições de preceitos fundamentais inscritos na Constituição ou até mesmo implícitas fulminam normas inferiores que sejam contrárias à Constituição.
O ponto mais alto do sistema normativo está ligado, portanto, à ideia de hierarquia de normas e sendo a Constituição a norma que ocupa o topo da pirâmide, impondo-se sobre todas as outras (paramont law ou suprema lex) fica claro que deve prevalecer.
Informa Walter Claudius Rothemburg, que há no direito alemão a reclamação ou queixa constitucional e “uma medida judicial por meio da qual qualquer sujeito lesado em algum direito fundamental pode invocar diretamente a tutela do Tribunal Constitucional”.
Quando é cabível o seu manejo? Não havendo uniformidade na doutrina quanto ao que seria “preceito fundamental”? Há que se esgotar outros meios processuais previstos constitucionalmente para aforá-la. A arguição é subsidiária, portanto, o que não desmerece a sua existência.
A arguição de descumprimento de preceito fundamento é uma inovação das mais salutares em nosso sistema de controle de constitucionalidade. Segundo Canotilho, citado por André Ramos Tavares: as regras e os “princípios”, para serem activamente operantes, necessitam de procedimentos e processos que lhe deem operacionalidade prática (Alexy: Regel / Prinzipien / Prozedur-Modell des Rechtssystems): O direito constitucional é um sistema aberto de normas e princípios que, através de processos judiciais, procedimentos legislativos e administrativos, iniciativas dos cidadãos, passa de uma law in the books para uma law in action, para uma “living constitution”.