Éverlan Stutz
Jornalista, professor, pós-graduado em gestão do patrimônio cultural pela PUC Minas
A preservação do patrimônio cultural é um princípio de civilidade e um marco de cidadania quando a comunidade tem vez e voz para participar efetivamente da salvaguarda de seus bens culturais. Essas acepções indicam como as instituições e a sociedade lidam com a proteção da memória social. De acordo com a Constituição Cidadã, o patrimônio cultural possui natureza indivisível e representa uma coletividade indeterminada de pessoas que não podem ser individualizadas. Trata-se de um interesse difuso que somente pode ser assegurado dentro de um panorama comunitário, pois o patrimônio cultural pertence a todos e ao mesmo tempo não há relação de pertencimento de forma individual.
Apesar do nacionalismo alegórico sustentado pelo desgoverno bolsonarista, houve uma indiferença sistematizada às políticas públicas preservacionistas e aos direitos culturais do povo brasileiro. Além disso, foi instaurado o silenciamento com a memória e a identidade cultural do país. Os órgãos de proteção, de pesquisa e de difusão da memória nacional sofreram sucessivas tentativas de sucateamento, como o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), a Fundação Palmares e as universidades federais, que padeceram com cortes orçamentários, ataques difamatórios e até a inviabilidade de projetos científicos por falta de investimentos.
O que ocorreu em 8 de janeiro não foi balbúrdia, foi barbárie. Essa data deve ser relembrada como uma demarcação contra o vandalismo cultural. O patriotismo sustentado negou a nação em sua diversidade étnica, artística, científica e paisagística. E isso não se restringiu apenas na negligência de políticas públicas no âmbito institucional ou simbólico. Mas violou direitos essencialmente coletivos, com a depredação de acervos que representam valores materiais e imateriais do patrimônio cultural do nosso país-continente. É necessário restabelecer políticas públicas preservacionistas específicas e democráticas que atendam às diretrizes da Constituição de 1988, como o respeito aos direitos difusos, a municipalização dos artefatos culturais e a sistematização de ações educativas centradas na proteção, valorização e difusão do patrimônio cultural, como um bem comum do povo brasileiro. O poeta Mario de Andrade escreveu um aforismo certeiro: “O passado é lição para se meditar, não para se reproduzir”.