Jornal Estado de Minas

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Violência sexual contra crianças e adolescentes: uma epidemia silenciosa



Daniele Bellettato Nesrala
Defensora pública coordenadora estratégica de 
Promoção e Defesa dos Direitos de Crianças e
 Adolescentes do Estado de Minas Gerais

De todas as formas de violência que podem ser praticadas contra crianças e adolescentes, a violência sexual é a que mais aterroriza pais, familiares e toda a sociedade. E não é para menos: os números da violência sexual contra crianças no Brasil impressionam.





Segundo o Anuário Brasileiro da Segurança Pública (BRASIL, 2022) cerca de seis crianças e adolescentes são vítimas de abuso sexual por hora no Brasil; são 126 abusos sexuais por dia em nosso país contra este público. Temos visto a frequência de notícias sobre estes crimes nos jornais.

Também é estarrecedor saber que mais de 85% das vítimas são meninas, o que deixa claro que este é um crime de misoginia. E os abusadores, por sua vez, em quase a totalidade dos casos (95%) são do sexo masculino. Entretanto, o mais assustador é que, geralmente, o abusador é conhecido da vítima em 82% dos casos, estando as maiores incidências entre os pais ou padrastos (40%); irmãos, primos ou outro parente (37%); e avós (8,7%).

A violência sexual pode ser caracterizada pelo simples toque indesejado no corpo da vítima ou em suas partes íntimas, mas também por beijos, carícias e outras condutas mais invasivas e lesivas à dignidade da criança ou adolescente. E por se tratar de pessoa ainda em desenvolvimento, a produção de material pornográfico ou a sua exibição para a vítima também importa em infração à lei penal.





Importante lembrar que quaisquer destas práticas com pessoas menores de 14 anos, ainda que tenha havido consentimento da vítima, configuram crime sexual. A lei, portanto, confere especial proteção a essas pessoas, por considerá-las vulneráveis.

A maior dificuldade para o enfrentamento desta verdadeira epidemia é que a ação dos agressores é clandestina, muitas vezes sem deixar vestígios ou testemunhas. E, pior, na maioria dos casos é provocada por alguém do círculo de convivência da criança, inclusive por aqueles que teriam o dever de protegê-la, levando-a a não desconfiar de que a ação do abusador é uma verdadeira ofensa.

Por esta razão, é importante que mães, pais, familiares, professores, profissionais da saúde e toda a sociedade estejam atentos aos sinais que a criança pode apresentar, tais como: queixa de dores nas partes íntimas; sinais de agressão; alteração abrupta de comportamento, como irritabilidade exagerada; dificuldade de concentração; queda brusca no rendimento escolar; alteração nos hábitos alimentares (comer demais ou não comer); choro frequente e sem motivo aparente; recusa de ir a algum lugar ou de aproximar-se ou cumprimentar determinada pessoa; dentre outros.





Justamente por haver uma dificuldade em se identificar agressões contra crianças e adolescentes a partir da ruptura do seu próprio silêncio, a Lei Henry Borel (Lei Federal 14.344/22) estabeleceu que também pratica crime a pessoa que deixar de comunicar à autoridade qualquer forma de violência contra criança ou adolescente, com pena de 6 meses a 3 anos, podendo a sanção ser aumentada da metade se aquele que deixou de informar a agressão for ascendente, parente consanguíneo até terceiro grau, responsável legal, tutor, guardião, padrasto ou madrasta da vítima.

Assim, todos que tenham conhecimento ou presenciem ação ou omissão lesiva aos direitos de criança ou adolescente têm o dever de informar às autoridades competentes. E um desses canais de comunicação é o Disque 100, mas é possível também o acionamento do conselho tutelar e da polícia civil.

Não é raro nos depararmos com casos de mães que deixam de comunicar violências – e consequentemente de proteger seus filhos – temendo não terem para onde ir ou como sustentar seus filhos, especialmente nos casos de violência doméstica e familiar, quando o agressor é o responsável pelo sustento do lar, por exemplo. Para romper essas barreiras e visando a estimular que pessoas denunciem e possibilitem a proteção imediata das crianças, a lei garantiu a aplicação de medidas de proteção também à denunciante e não apenas à vítima, como ordens restritivas de aproximação ou contato, fixação de pensão alimentícia, encaminhamento a abrigo sigiloso e protegido e ainda a sua inclusão em programa de proteção de testemunhas, na forma da Lei 9.807/99.





Entretanto, a melhor forma de proteger nossas crianças dos agressores sexuais é fazê-las empoderadas para a sua própria defesa. Mas como fazer isso? O melhor é conversar abertamente com elas, desde a mais tenra idade, explicando quais são as partes íntimas do seu corpo e que ninguém tem o direito de invadir a esfera da sua intimidade ou tocar em seu corpinho, beijar ou acariciar sem seu consentimento. Não que o consentimento da criança seja capaz de afastar a existência de prática criminosa.
 
 
 
 
Mas é preciso esclarecer que qualquer sentimento estranho que sintam em relação a afagos ou carícias pode e deve ser contado aos pais ou outras pessoas de sua confiança. E, principalmente, se alguém fizer algo que a criança estranhe, mas pedir a ela para não contar para ninguém, inclusive ameaçando fazer algum mal, é aí que a criança deve contar para pessoas de sua esfera de suporte o mais rápido possível.

Essa conversa tem que ser frequente, repetida em diversas fases do crescimento da criança, acrescentando-se mais detalhes conforme seu grau de compreensão ou sua curiosidade aumentam. O objetivo é que a criança se apodere destas ideias e conceitos, de modo que seja capaz de identificar uma situação arriscada, podendo, assim, evitá-la ou denunciá-la.





E se a criança, em algum momento, revelar ter sido vítima de abuso, é importante que o adulto que a escuta não faça estardalhaço nem coloque palavras em sua boca. Por exemplo, se quiser perguntar quem fez isso ou aquilo, não se deve perguntar: “Foi o fulano que fez isso com você”? Mas sim: “Você sabe me dizer quem fez isso com você?”. O relato deve ser livre, espontâneo e jamais induzido, daí o cuidado em se perguntar de forma a dar espaço para a manifestação da criança. Não se deve exemplificar qual foi a violência praticada, mas questionar de forma abrangente: “o que foi que ele fez que você não gostou?”. Ou seja, o adulto que ouve uma revelação de abuso nunca deve introduzir na conversa com a criança nomes, pessoas, lugares, objetos, partes do corpo ou modo de agir que própria criança não tenha mencionado. Isso pode causar grandes equívocos na condução do caso.

Na hora da revelação, preocupe-se em escutar atentamente o que a criança tem a dizer, sem fazer alarde ou escândalo. Não duvide do relato que lhe é feito. E evite conversar sobre o fato com terceiros ou familiares, especialmente na frente da criança. Estas são condutas que podem assustar a criança, envergonhá-la ou fazê-la sentir-se culpada da revelação que fez, o que dificultará sobremaneira a sua efetiva proteção e potencializará os efeitos danosos da violência que sofreu. Neste momento, o mais importante é garantir que a criança esteja em segurança e receba os cuidados adequados.

Assim, após tomar conhecimento da prática de violência contra criança ou adolescente, ligue para os canais de atendimento ou acione as autoridades competentes mais próximas. E se precisar de outros esclarecimentos ou orientação, a Defensoria Pública de Minas Gerais está de portas abertas para auxiliar. Você pode consultar o site https://defensoria.mg.def.br ou enviar sua dúvida por e-mail para: faleconosco@defensoria.mg.def.br. Afinal, é dever de todos assegurar que crianças e adolescentes cresçam e se desenvolvam em ambiente seguro, com saúde e proteção.