Sandra Franco
Consultora jurídica especializada em Direito Médico e da Saúde, doutoranda em Saúde Pública, MBA-FGV em Gestão de Serviços em Saúde, diretora jurídica da Abcis, consultora jurídica da ABORLCCF, especialista em Telemedicina e Proteção de Dados, fundadora e ex-presidente da Comissão de Direito Médico e da Saúde da OAB de São José dos Campos (SP) entre 2013 e 2018
Relatório recente do Ministério da Saúde revelou que mais de 1 milhão de procedimentos cirúrgicos eletivos estão travados na fila do SUS em todo o Brasil. Um cenário que se repete por gerações no país. Acumulam-se décadas de falência do sistema da saúde público, apesar das mudanças de governo. Paralelamente, a saúde suplementar também passa por um período de emergência financeira, quer por ter havido um aumento no uso, quer por fraudes que assolam as operadoras de planos de saúde.
O sistema público de saúde apresenta falhas em seus principais programas e precisa de ações mais efetivas para transformar essa realidade. O Ministério da Saúde anunciou que pretende repassar cerca de R$ 600 milhões aos governos estaduais e do DF para a redução dessa fila. De acordo com o Ministério, para receber o recurso financeiro, cada estado deve enviar um plano com o número de cirurgias eletivas identificadas na fila, quantas poderiam ser realizadas com o investimento do governo federal e os hospitais que fariam as operações. O levantamento demonstrou que Goiás é o estado que tem a maior fila: são cerca de 125 mil procedimentos travados. Em seguida, aparece São Paulo, com 111 mil, e em terceiro lugar, o Rio Grande do Sul, com 108 mil.
As principais cirurgias que representam demanda represada nos estados inscritos no programa até agora são: cirurgia de catarata, retirada da vesícula biliar, cirurgia de hérnia, remoção das hemorroidas e retirada do útero. Certamente, para tratar das intercorrências que algumas dessas condições provocam, o SUS gasta tanto (ou mais) do que gastará com o procedimento cirúrgico em si. Quanto custa mensalmente cada um desses pacientes à espera de uma cirurgia? Esses números não foram apurados.
Segundo as estimativas, esse investimento deve reduzir em cerca de 45% o total dos procedimentos. Assim, se o projeto correr como o planejado, cerca de 487 mil cirurgias serão feitas, mas ainda sobrarão mais de 595 mil na fila de todo o Brasil.
Ou seja, esse programa terá um efeito paliativo. Sem dúvida, ajudará milhares de pessoas e famílias, mas ainda não é a solução para esse gigantesco problema. Essa fila poderá crescer rapidamente, caso não sejam tomadas outras medidas paralelas de curto e médio prazos.
É possível que o governo faça mutirões e parcerias com instituições privadas para diminuir filas e atender a essa demanda. Consultas por telemedicina para fazer uma triagem dessas pessoas que estão na fila, a fim de que especialistas avaliem se essas pessoas realmente precisam de cirurgias, pode ser um primeiro passo importante. Depois dessa triagem, pode ser realizado um chamamento dos especialistas por áreas, para que eles sejam distribuídos nos estados e municípios onde suas especialidades sejam mais requisitadas. Uma verdadeira força-tarefa com o uso da tecnologia, como já se provou possível e eficaz em vários projetos financiados pelo Proadi (Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do Sistema Único de Saúde).
Um fator que corrobora para essa longa espera está na má distribuição dos médicos especialistas no Brasil. O número de médicos no país cresceu fortemente nos últimos anos, atingindo mais de 500 mil profissionais, uma média de 2,4 para cada 1 mil habitantes. Entretanto, a distribuição ainda é bastante desigual, com maior presença nas regiões mais ricas e menos oferta no Norte e Nordeste. Os dados são de uma pesquisa realizada pelo Conselho Federal de Medicina, em dezembro de 2020. A falta de equilíbrio ocorre também quando comparados os sistemas de saúde. Dos profissionais, 28% atendem exclusivamente no setor privado, 22% somente no setor público e os 50% restantes nos dois tipos de serviços.
De fato, é imprescindível que haja por parte do governo a contratação de mais profissionais também para atenção primária para se evitar doenças ou para evitar que doenças se tornem crônicas. No último dia 22 de maio, o governo federal publicou um novo edital para chamamento de profissionais que queiram participar do programa Mais Médicos para o Brasil. No documento publicado pelo Ministério da Saúde, o ciclo válido de trabalho é de quatro anos, para formados em instituições nacionais ou estrangeiras. Nesta etapa, serão 5.970 vagas em 1.994 municípios brasileiros.
Espera-se que essas contratações sejam realizadas com seriedade, ética e transparência, para não criarmos mais um problema de gestão. Já houve casos de médicos locais serem dispensados para que o munícipio contratasse um médico que seria pago pelo programa, como uma forma de desonerar a “folha” municipal. Mas trocar um médico por outro não resolve o problema, o que se precisa é de mais profissionais que prestem um atendimento efetivo à população.
Segundo levantamento feito pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça), em 2021, para analisar as principais causas que levam à fila de espera no SUS, não somente a falta de especialistas justificaria que uma consulta com ortopedista possa demorar 1 ano. A escassez de recursos nos hospitais públicos resulta na falta de equipamentos, de insumos e de medicamentos.
Seria também lamentável ver, em um futuro breve, notícias envolvendo os desvios desses recursos federais destinados a esse “programa para redução de filas”, como se verificou em 2022, quando a Polícia Federal deflagrou operações em alguns estados, para apurar a mau uso de verbas destinadas exclusivamente ao combate à epidemia, com a consequente ocultação de movimentação financeira e lavagem de dinheiro.
Espera-se que as políticas de saúde pública tratem o indivíduo como parte de um sistema que necessita de políticas sérias, com controle efetivo das demandas reprimidas tanto de cirurgias como consultas ou procedimentos. Necessário projetos de curto, médio e logo prazo para solucionar os problemas de muitas vidas, de muitas famílias. As soluções precisam ser pensadas de forma interdisciplinar, envolvendo vários autores (inclusive a população), sob pena de não se conseguir mudanças duradouras, mas sim soluções imediatistas que não tratam diretamente causas dos problemas de saúde.
Se mudanças não começarem a ser feitas de imediato, o brasileiro continuará ingressando na justiça para não morrer na fila ou no corredor de um hospital, enquanto o dinheiro público vaza por outros meios, por exemplo, a judicialização. Essencial que se efetive realmente um programa de promoção à saúde, com a prevenção de doenças e diminuição de uma medicina “hospitalocêntrica”. A sociedade não precisa ter uma saúde pública cronicamente doente.