Jornal Estado de Minas

artigo

Saneamento rural: uma crônica dívida social


Léo Heller

Pesquisador da Fiocruz-MG, ex-relator especial das Nações Unidas para os Direitos Humanos à Água e ao Saneamento
 


O déficit em saneamento no Brasil, vez por outra, é destacado pela imprensa e chama a atenção da sociedade brasileira. Quando esse quadro ganha a luz do dia, consterna aos que têm sensibilidade social, sobretudo quando a denúncia é mostrada em meio a imagens, que nos remetem a tempos medievais, com crianças brincando em meio aos esgotos e lixo e meninas carregando latas de água.




 
Quase sempre, porém, esse quadro é mostrado de forma generalizante, sem qualificação do debate e, pior, visando à defesa de algum tipo de nova política. Tal ocorreu em 2020, quando o governo federal propôs a alteração da lei nacional de saneamento, utilizando do déficit para justificar a privatização dos serviços. É um bom exemplo de como essa narrativa pode atender a diferentes interesses, inclusive aqueles que não resolverão o próprio déficit.   
 
Uma análise séria desse quadro, no entanto, requer localizar o déficit e identificar as populações particularmente mais atingidas. Quando se coloca uma lupa nesse contexto, fica em evidência a situação do saneamento nas áreas rurais. Para ficar em alguns poucos números, o Programa Nacional de Saneamento Rural (PNSR) estima que apenas 40% da população rural brasileira dispõem de um atendimento adequado por abastecimento de água, e somente 20% por esgotamento sanitário. Essas cifras, segundo o Plano Nacional de Saneamento Básico (Plansab) são de 60% e 55%, respectivamente, para o total da população brasileira, ficando patenteada a enorme brecha entre quem vive nas cidades e nas áreas rurais. 
 
A situação em Minas Gerais não é distinta da nacional. Para entendê-la, basta sair de nossas sedes municipais e caminhar pelos distritos. Invariavelmente, observaremos, quando existe alguma solução coletiva, a água distribuída de forma irregular e sem a qualidade mínima que proteja a saúde humana. Rede de coleta de esgotos raramente está implementada e as fossas, muitas vezes a solução recomendada para áreas com baixa densidade populacional, funcionam precariamente, com extravasamentos e contaminação da água e solo. A coleta de lixo é muito pouco presente e menos ainda a disposição sanitária e ambientalmente adequada dos resíduos.
 
Caberia perguntar o porquê da persistência desse inaceitável quadro, em um país que vem melhorando seus índices de desenvolvimento humano, embora infelizmente mantendo uma das maiores desigualdades do mundo. Uma das mais plausíveis respostas é a absoluta invisibilidade do quadro das zonas rurais para as políticas públicas. O saneamento rural, com raras exceções, sempre esteve subsumido pelo saneamento urbano, o que impede atribuir a prioridade necessária para essas populações, além de impedir o reconhecimento de que são situações com características sociais, culturais, demográficas e ambientais próprias. Por essa razão, requerem soluções tecnológicas específicas e modelos de gestão apropriados à sua realidade, certamente distintos daqueles empregados nas zonas urbanas.




 
O governo mineiro tem um histórico de ações muito limitadas, esparsas, descontínuas e não sistêmicas para o saneamento nessas áreas. Em verdade, a se observar os movimentos mais recentes, a prioridade é outra, com benefícios muito discutíveis para essas áreas.
 
Passa da hora de a sociedade mineira voltar os olhos para essa inaceitável carência e efetivamente reconhecer que os direitos humanos à água e ao esgotamento sanitário devem deixar de ser uma “retórica urbana” e passem a orientar as políticas de saneamento, fazendo valer o Artigo 1º da Declaração dos Direitos Humanos: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. devem agir ... com espírito de fraternidade”.