Andreia Donadon Leal
Mariana – MG
"É preciso dar uma chance ao livro. É preciso dar uma chance às estórias que nos levam a outros mundos e experiências ternas ou revoltosas. É preciso entrar no mundo imagético das palavras e das multimodalidades textuais. Leio porque aprendo a entender o outro, a ter empatia pelo outro e por mim; ler me leva à alteridade, neutraliza minha ferocidade, amarra pontas soltas. Ler me leva a ressignificar vocábulos, a entender multiplicidades de sentidos e formas de enfrentar o mundo. Leio porque me redescubro nos sentimentos alheios, nos sentimentos de outros em mim, nos sentimentos de mim nos outros, refazendo-me. Leio porque preciso humanizar asperezas e rugosidades; aparar arestas da vaidade e injustiça. A chuva ressurgiu depois de longa estiagem. Três dias de pingos generosos e delicados. Acidente na rodovia. Não vi as vítimas, socorridas com brevidade... Uma mariposa multicolorida pousou no corrimão da grade carcomida pelo tempo. Prevejo boas ou más novas. Ganhei um cacho de bananas roliças. Em dois dias amadureceram. Fiz doce com canela e cravo. Lembrei-me do caderno de receita perdido em alguma prateleira dos cômodos. Desisti de procurar. Milhares de livros rodeiam a casa. Às vezes, eu dialogo com obras enfileiradas nas prateleiras, com personagens, imagens, editores, revisores, diagramadores, ilustradores; um punhado de gente que deu pulso a ideias, sonhos que ressignificaram vidas e motivos para seguir. Não me leio. Esqueço a maioria das estórias de minhas obras. Não elegi autor para me formatar. Sigo meu instinto, construindo-me ou me despindo, criando outros textos e estórias. Vejo-me, às vezes, infértil. Sem mais, sem menos, eu apenas, despida de motivações. Pauso, respiro, no momento oportuno, insisto. Tentam, a todo custo, silenciar, censurar e desvalorizar nossas vozes. Nunca desisti das letras. Palavras são pedras delicadas e pontiagudas; ferem ou aquecem. Silêncios me agradam. Barulho infernal de pessoas soltam urros, numa algazarra marcada pela alegria motivada pelo álcool e fumo. A produção textual é, cada vez mais, marcada pela mescla da escrita e imagem, numa relação indissociável. Configuro-me na multiplicidade de sentimentos. Às vezes, metade fel, metade mel. Fio e me desfio. Gritos de meninos enfernizam silêncios. Não leem. Um diz que não sabe o que é livro impresso. Outro ironiza que arranca as folhas do livro para limpar as partes íntimas. 'Escritor? Nunca vi, dona. Estão enterrados em algum buraco da terra ou moram em outro planeta. Não gosto de leitura nem de livro. É enfadonho'. Diz um menino. Riem. Teclam, com destreza, seus aparelhos móveis. O mais velho diz que vai ter exame, depois de amanhã. O outro dá de ombros. 'Vou passar, de qualquer forma, véi'. Ele é véi, eu moro em outro mundo. Entro. Ligo o computador. Anoitece. Céu opaco. Meus olhos, molhados e cansados, resistem. Desfio a ponta do vestido rasgado. Corto, desfio. A peça de roupa se transforma num novelo. Amanhã, pela manhã, levarei os fios para a arteira de tecidos. Fiar é arte da tecelã. Cato estrelas no céu acinzentado, fiando pontos difusos de palavras e imagens. É preciso dar chance aos fios de pano, às palavras e ao livro. Como disse Stephen King: 'Os livros são entretenimento perfeito: sem anúncios, sem bateria, horas de prazer a cada dólar gasto. O que não entendo é por que as pessoas não têm sempre um livro com elas, para aquelas inevitáveis zonas mortas da vida'. A vida, neste século, Stephen King, é configurada na necessidade do anúncio, na bateria e no prazer indissociável de ter um aparelho móvel ligado a tomadas e às redes."