Em três séculos, a identidade de Minas, e pode-se dizer que o orgulho também, foram preparados em volta do fogão a lenha, das mesas fartas e dos pratos da “cozinha de quintal”, aquela feita com ingredientes cultivados pela família, as verduras da horta e as criações, como o porco e a galinha. Nas Gerais, as refeições são alimento para saciar a fome,mas não apenas isso. Servir-se é uma experiência, um acontecimento. E grande parte da reputação se deve à gastronomia de Tiradentes, que conseguiu a proeza de unir a tradição da cozinha mineira e a renovação da gastronomia, para agradar a todos os paladares. “Tiradentes é uma grife gastronômica”, resume Beth Beltrão, da Frente Mineira da Gastronomia.
Não é à toa que a cidade é destino certo para quem quer experimentar os sabores e temperos da cozinha mineira, e tornou- se também um dos principais destinos do turismo gastronômico no Brasil, com restaurantes da cozinha contemporânea e da culinária internacional. Tanto em restaurantes simples quanto nos mais badalados, é certo que o comensal encontrará comida muito boa. A cidade recebe um dos mais importantes eventos gastronômicos do país: o Festival de Gastronomia Tiradentes, realizado desde 1997, e o Fartura Tiradentes.
Os restaurantes se notabilizam pela qualidade dos ingredientes, sempre frescos e saborosos, fazendo jus à tradição das cozinhas de Minas. Dois deles, o Virada’s do Largo, comandado por Beth Betrão, e o Ora-pro-nobis, do chefe João Lombardi, buscam ingredientes para receitas no quintal. Quem chega ao Virada’s encanta-se com a horta e pode, inclusive, pedir à chef que prepare um prato exclusivo a partir da verdura fresca colhida na hora. O ora-pro-nóbis também vem do terreiro. Os restaurantes estão em sintonia com movimentos como slow food, de valorização do alimento orgânico e fresco, cultivados sem agrotóxico.
Os pratos criados por Beth Beltrão acompanham sempre uma boa história, o que faz com que a experiência de ir ao restaurante seja também um momento de interação com a hospitalidade mineira. “A gastronomia de Minas é essa maravilha que a gente tem, presente de Deus para este estado maravilhoso, que a gente mantém nessa fidelidade à cultura gastronômica. Fico muito feliz de fazer parte desse grupo de cozinheiros”, afirmou.
Um dos pratos que ela serve foi batizado pelo estilista Clodovil (1937-2009) que, certa vez, quando visitou o restaurante, pediu que Beth preparasse algo só para ele. Ela serviu uma carne serenada na manteiga, feijão batido, mandioca frita e farofa de ovo. Ao provar, Clodovil só pôde dizer: “Trem bão”. Virou nome de batismo do prato.
Natural de Passos, Beth Beltrão se mudou para a cidade histórica – e a adotou – há 30 anos. Foi lá também que decidiu abrir o restaurante Virada’s, um dos mais procurados por quem ama a culinária mineira.
Beth foi uma das contempladas como Oscar da Gastronomia quando Minas foi homenageada no Madrid Fusión, edição 2013, um dos principais eventos de gastronomia do mundo. “Sempre fizeram a escolha pelos continentes e olha só: eles escolheram o nosso maravilhoso estado de Minas Gerais. Isso é algo de peso para nós. Não quer dizer que a nossa gastronomia é a melhor, mas é uma gastronomia de fidelidade, de carinho, de afeto e de história. A gente,como mineiro, não quer fazer uma comida de retrato, a gente quer fazer comida para dar alegria e surpreender”, defende Beth.
A cozinheira segue o lema “cozinhar é arte e arte não se faz com pressa”. “A gente desacelera as pessoas. Mostra nosso carinho não só no sabor, mas nesse abraço de mineiro, que é muito importante e está fazendo muita falta agora, em momento de pandemia.”
Na avaliação dela, Tiradentes virou uma marca de gastronomia pela dedicação que as pessoas têm e o comprometimento com o ato de preparar os alimentos. “Temos muitos e bons restaurantes aqui em Tiradentes.” Ela conta que muita gente chega ao restaurante atraída pelo cheiro. “Em qualquer lugar em que você estiver aqui, andando na Rua Direita, na praça, nas imediações, você sente o cheiro da comida” e tem dado certo. O restaurante está sempre cheio e, muitas vezes, é preciso fazer reserva para conseguir uma mesa. O cardápio faz sucesso há 30 anos, o que demonstra fidelidade e tradição.
O chef João Lombardi escolheu o ora-pro-nóbis como o astro do restaurante, batizado com o nome da verdura. “É um ingrediente que ganha pela simplicidade. Uma folhinha super simples, super comum, de fácil acesso, que todo mundo consegue ter no quintal e no jardim. Conseguimos criar pratos com esse ingrediente que são tão procurados”, afirma.
E o ora-pro-nóbis é de fato a verdura da vez. Ganha espaço na criação de grandes chefs e encanta todos os paladares. Também entrou na preferência de veganos e vegetarianos, por sua qualidade nutritiva. “É uma verdura muito rica em proteína, muitas vezes substituindo a carne. Proporciona a possibilidade de criar, ser usada de vários modos dentro da cozinha, e com isso trazendo resultados muito bacanas.”
O ingrediente não rouba a cena: de sabor suave e textura única, combina com carnes e risotos, por exemplo. “Não tem nada que se pareça com o ora-pro-nóbis”, define Lombardi. O chef criou pratos exclusivos com o ingrediente – o risoto de galinha caipira ou o risoto de ora-pro-nóbis. “A cozinha mineira é um pouco isto: o fundo de quintal, as criações… Ter um porquinho no quintal, uma galinha, a hortinha de couve. E o ora-pro-nóbis, claro, que é peça fundamental na horta dos mineiros.”
O restaurante, fundado há 17 anos, está de endereço novo. Transferiu-se do Centro Histórico para o bairro Pacu, na entrada da cidade. O cardápio vigora desde a inauguração. “Para criar o cardápio, tento pensar o que o meu cliente vem buscar. Tento imaginar o que ele não tem na terra dele, o que vem buscar da culinária em Tiradentes. Tento remeter à minha criação”, afirma João. E conclui: o ora-pro-nóbis acalma a alma.
O poder do fogo
Impossível definir a alma das Gerais sem falar da arte culinária, esse tesouro cultural que atravessa fronteiras, atrai visitantes e se tornou marca registrada da mineiridade. Mais impossível ainda não destacar o nome de Lúcia Clementino Nunes (1932-2019), a dona Lucinha, natural do Serro, no Vale do Jequitinhonha, e muito mais do que um artista da cozinha: era professora, pesquisadora, escritora, mãe de 11 filhos e conhecedora da sua missão.
O legado de dona Lucinha é tratado com devoção pela filha Márcia Nunes, formada em história, especialista em arte culinária mineira e proprietária do restaurante Dona Lucinha. “A cozinha mineira é uma síntese étnica”, aprendeu Márcia com a mãe, pois as receitas têm influência dos portugueses colonizadores, dos negros escravizados e dos índios, os primeiros habitantes da terra.
Foi durante uma viagem que Márcia ouviu de um estudioso a frase “O fogo é o lar”, da qual nunca se esqueceu. Tanto que se tornou título do capítulo do livro História da arte da cozinha mineira por dona Lucinha, que escreveu em 2001. “A palavra lar vem de lareira, portanto, traduz o aconchego, a casa. O fogão a lenha tem muita importância na nossa cultura, o fogo aquece a alma de Minas, reúne as famílias, prepara o alimento.”