Jornal Estado de Minas

Mineiridade

Entrevista com Walderez Ramalho: Existe um "jeito de ser mineiro"?


 
O jeito mineiro de ser tem nome: mineiridade. Mas não pense, caro leitor, que se trata apenas de uma forma de falar, de levar a vida ou de viver longe do litoral. O conceito vai bem além das montanhas e, para desvendar esse fascinante universo, o historiador Walderez Ramalho mergulhou fundo nas águas da política, da cultura e do comportamento.





O resultado está na dissertação de mestrado “A historiografia da mineiridade: trajetórias e significados na história republicana do Brasil”, defendida na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Natural de Governador Valadares, na Região Leste do estado, e doutorando em história pela Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop), com estágio na Universidade de Gante, na Bélgica, Ramalho pesquisou os amplos aspectos que tentam definir a mineiridade. E revela que há referências documentais versando sobre um suposto “caráter” ou “identidade” mineira desde o período colonial, entre eles um famoso documento atribuído ao conde de Assumar justificando suas ações de repressão após a Revolta de Vila Rica, em 1720.

Ramalho diz que existe um sentimento de pertencer a Minas Gerais compartilhado de variadas formas, “mas não se pode elaborar esse sentimento em um conceito fechado e definitivo”. Foi assim, explica, que Guimarães Rosa definiu a mineiridade em um ensaio clássico de 1957, uma verdadeira declaração de amor a Minas Gerais: “MINAS: patriazinha.





Minas – agente olha, se lembra, sente, pensa. Minas – a gente não sabe”. Em entrevista ao Estado de Minas, o pesquisador dá detalhes sobre esses estudos que sondam um pouco da alma mineira.

O que significa mineiridade?

Mineiridade é um termo que faz referência a um conjunto de significados simbólicos e culturais ligados a um suposto “modo de ser mineiro”. Entretanto, os significados específicos ligados a esse termo variaram bastante ao longo do tempo, como demonstrei na minha dissertação de mestrado. Justamente por não ter um sentido fixo e definido, ou por ter um significado aberto, o tema foi tão visitado e é discutido por intelectuais, artistas, políticos e cidadãos mineiros em geral. Há um sentimento de pertencer a Minas Gerais que é compartilhado de variadas formas, mas não se pode elaborar esse sentimento em um conceito fechado e definitivo.

Quando surge esse conceito?

Existem referências documentais que versam sobre um suposto “caráter” ou “identidade” mineira desde o período colonial, por exemplo, em um famoso documento atribuído ao conde de Assumar justificando suas ações de repressão após a Revolta de Vila Rica, em 1720. Em relação ao termo “mineiridade” propriamente dito, a historiografia considera que o primeiro a empregá-lo foi Aires da Mata Machado Filho, em conferência proferida em 1937, em Diamantina, sobre o escritor Couto de Magalhães. Gilberto Freyre, célebre intérprete do Brasil, deu sua própria versão do sentido de “mineiridade” em outra conferência, realizada em julho de 1946 na Faculdade de Direito de Belo Horizonte, com o título “Ordem, liberdade, mineiridade”.





É possível detectar a mineiridade no cotidiano da população?

Em minha pesquisa, considerei a mineiridade como um discurso, uma representação simbólica, e não como uma “essência” que supostamente definiria toda e qualquer pessoa nascida ou que mora em Minas Gerais. Assim, não foi minha intenção definir quais características pertencem ou não ao “mineiro/a”, mas sim analisar como os discursos da mineiridade mobilizaram uma série de sentidos e imagens sobre o “ser mineiro”, muitos dos quais ainda se fazem presentes na forma de estereótipos (“desconfiado”, “tradicionalista”, “hospitaleiro”, “comedido”, entre outros). 

Esses significados não estão inscritos no DNA das pessoas desde o seu nascimento até a sua morte, mas são, antes de tudo, construções imaginárias que, de fato, exercem sua influência na experiência concreta. São importantes porque dão sentido para as ações e valores compartilhados em uma comunidade, mas isso não significa que qualquer comportamento ou visão de mundo divergente seja “anormal” ou “desviante” do padrão aceitável. Se fosse assim, a “mineiridade” seria uma prisão e traria mais desvantagens que vantagens para a vida.

E do ponto de vista das ações políticas?

O discurso da mineiridade desempenhou função importante para projetar Minas no cenário político nacional. A esse termo está associada a ideia de “equilíbrio”, “ponderação”, “conciliação”, e “senso grave da ordem” (expressão cunhada por João Pinheiro no início do século 20), entre outros sentidos. Nem sempre, porém, as lideranças políticas mineiras se comportaram historicamente de acordo com essas imagens.





Por que o senhor decidiu estudar esse assunto?

Eu me interessei pelo tema por me deparar frequentemente com afirmações do tipo “o mineiro é isso ou aquilo”, e tinha interesse de saber de onde surgiram essas imagens, de onde vieram essas ideias sobre uma “identidade mineira”. Do ponto de vista acadêmico, tinha interesse em abordar essa questão de uma perspectiva da teoria e história da historiografia, que é o meu campo de atuação. 

E o interesse pelo período republicano se deu por dois grandes motivos: por um lado, porque foi nesse período que os discursos sobre a mineiridade começaram a aparecer com maior frequência na historiografia e no meio político; por outro, porque a partir da década de 1980 houve um deslocamento na literatura consultada: cada vez mais os autores deixaram de ver a mineiridade como uma “essência” fixa e imutável que toda pessoa em Minas traz consigo, e mais como um discurso e uma representação que variou historicamente e desempenhou funções específicas ao longo do tempo.

Em que momentos da história a mineiridade está mais presente?

No campo intelectual, interpretações sobre o “ser mineiro” proliferaram desde as primeiras décadas do século 20, quando Minas Gerais se afirmava como uma das grandes forças políticas do país, ao lado de São Paulo. Desde então, o tema da mineiridade é revisitado com frequência nos estudos acadêmicos, na literatura e nas artes em geral. No campo da política, o termo apareceu com força em momentos críticos da história do país – por exemplo, com o fim do Estado Novo e na publicação do Manifesto dos Mineiros –, ou mesmo no período da redemocratização do país, em 1985, quando Tancredo Neves fez frequentes menções ao jargão para justificar o seu papel de conciliar o país e promover uma nova ordem democrática.





Antes, diziam que a Presidência da República passava pelo Palácio da Liberdade. Isso era mineiridade ou resquício da dobradinha “café com leite”?

As duas coisas. De fato, eu demonstrei na minha dissertação que a ideia de Minas Gerais como centro político do Brasil é uma constante nos usos políticos da mineiridade. Ao lado da imagem do mineiro como naturalmente equilibrado, prudente e dotado do “senso grave da ordem”, muitos autores interpretam Minas como o estado que sintetiza o Brasil, como seu centro articulador no sentido geográfico, histórico, político e cultural. Dessa caracterização nasceu também a ideia de que Minas possuiria uma natural vocação para a política, de onde se procurava justificar e promover a influência do estado nos negócios políticos do país.

E essa é uma ideia da política republicana?

A ideia de Minas como vocacionada para a política é remetida até antes do período do “café com leite”– por exemplo, o Ministério da Conciliação criado durante o reinado de dom Pedro II para pacificar o país foi liderado por um político mineiro, Honório Hermeto Carneiro Leão, o marquês do Paraná. Mas essa imagem foi sem dúvida fortalecida durante a República Velha, e permaneceu bastante ativa na história republicana do Brasil (fim da Era Vargas, o governo de JK, a participação de Minas no Golpe de 1964 e, mais tarde, também na redemocratização do país com figuras como Tancredo Neves e Itamar Franco).

Com os novos tempos, a mineiridade desapareceu ou se transformou?

Se entendermos a mineiridade não como essência, mas como um discurso, então ela está sempre em transformação. Gosto de dar como um exemplo da historicidade do discurso do “ser mineiro” a contradição entre dois importantes intérpretes da mineiridade. Em 1904, o célebre historiador Diogo de Vasconcelos escreveu em seu livro História antiga das Minas Gerais que a “alma mineira” se caracterizaria pelo respeito à ordem e a cooperação obediente com os governos. Já seu neto, Sylvio de Vasconcelos, escreveu em seu célebre ensaio de 1968, intitulado Mineiridade: ensaio de caracterização, exatamente o oposto. 





Para Sylvio, o que caracterizaria a mineiridade seria a insubmissão e o amor à liberdade, destacando a constância das revoltas históricas ocorridas em Minas Gerais. Ambos procuraram justificar suas afirmações com fatos históricos, mas cada um destacou partes específicas dessa história e, principalmente, visavam a objetivos políticos distintos. Diogo escreveu no momento de afirmação de Minas Gerais durante a República Velha, enquanto Sylvio escreveu durante a ditadura militar, procurando assim realçar o aspecto da insubmissão e revolta entre os mineiros.

Há região em que o mineiro é “mais mineiro”?

Essa questão também foi longamente discutida na historiografia da mineiridade. Houve quem dissesse que “mineiro” é apenas a pessoa originada da região central do estado, ou quem tem origem nas cidades formadas no seio da mineração. Os demais seriam os assim chamados “geralistas”, provenientes dos sertões ao norte ou no Triângulo, por exemplo. Essa divisão entre “mineiros” e “geralistas” foi tema recorrente ao longo da história. Mas há quem considere essa divisão artificial, pois haveria uma única Minas Gerais comum a todos. E há ainda quem diga que não existe “uma” Minas Gerais, mas sim, que “Minas são muitas”, para novamente citar o grande Guimarães Rosa. Não há como se chegar a uma resposta conclusiva e definitiva a essa pergunta, mas é justamente dessa abertura que a mineiridade continua um tema fascinante, objeto de muitas reflexões e debates. Em Minas e no Brasil.

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