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"Quem ama não mata": dois tempos

Lançado em agosto de 1980 para denunciar casos de violência contra a mulher, movimento ganha reedição neste mês, incorporando novos grupos e novas pautas da luta feminista


postado em 02/11/2018 05:07

Ato de protesto pelo assassinato de Eloisa Ballesteros Stancioli e de Maria Regina dos Santos Sousa Rocha lança a campanha
Ato de protesto pelo assassinato de Eloisa Ballesteros Stancioli e de Maria Regina dos Santos Sousa Rocha lança a campanha "Quem Ama Não Mata", nas escadarias da Igreja São José, em 18 de agosto de 1980 (foto: Fotos: Vera Godoy/Arquivo EM)


Julho de 1980

De repente, aquela mulher, sorrindo na foto 3x4 da revista Veja, nos assombrava: Eloisa Ballesteros, morta por seu marido com vários tiros, enquanto dormia. Motivo: suspeita de traição. Duas semanas depois, outra mulher, Maria Regina Souza Rocha, nas páginas dos jornais, morta a tiros, de manhã, ainda com o uniforme de ginástica. Motivo: o marido não aprovava seus novos modos. Ela tinha, inclusive, dado para fumar.

“É preciso fazer alguma coisa”, pensávamos nós, mulheres.

Julho de 2018

De repente, aquela mulher, tão linda, sorridente em fotos de família, aparecia naquelas imagens de câmera de segurança em preto e branco, no Jornal Nacional. Não havia som, mas dava para escutar os gritos desesperados pedindo socorro, pedindo ajuda, na calçada em frente ao prédio em que morava, na garagem, sendo derrubada e chutada dentro do elevador. Via-se ela caminhar para a morte, que ocorreu alguns minutos depois, longe das câmeras, arremessada da varanda do sexto andar. Motivo: o marido da advogada Tatiane Spitzner não queria a separação.

“É preciso fazer alguma coisa”, pensamos nós, mulheres.


m ambos os momentos, um pequeno grupo de jornalistas iniciou o movimento.

Em 1980, Dagmar Trindade e Mirian Chrystus, repórteres, e Antonieta Goulart, chefe de reportagem da TV Globo Minas. A direção jornalística apoiou: tratava-se de ganhar espaço no Jornal Nacional.

Em tempos sem internet, o boca a boca, a imprensa – escrita e televisiva – funcionaram como um rastilho de pólvora. Foram realizadas reuniões na Pontifícia Universidade Católica (PUC Minas) e na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). A decisão: fazer um ato público no adro da Igreja São José, no coração de Belo Horizonte.

Como era a Belo Horizonte de 1980? Como era o Brasil?
Ainda estávamos numa ditadura. Já nos seus estertores, mas ainda viva. O país era governado por um militar, João Baptista Figueiredo, que prosseguia a linha da “distensão gradual, lenta e segura” proposta por Ernesto Geisel. Os anos mais terríveis de tortura tinham ficado para trás, mas a ameaça pairava no ar. Um ato público era algo original – e temerário.

Aquele ato tinha antecedentes. Em 1975, Ano Internacional da Mulher, um pequeno grupo de estudantes de jornalismo promoveu um seminário sobre a mulher brasileira no Diretório Central dos Estudantes (DCE) da UFMG. Naqueles tempos sombrios, o movimento estudantil e suas palavras de ordem eram um foco de resistência da sociedade civil organizada. “Pelas liberdades democráticas” era a saudação em todas as comunicações do movimento estudantil. Alguns meses antes, o DCE vinha promovendo vários debates em seu espaço cultural na Rua Gonçalves Dias (hoje Cine Belas Artes). Discutia-se com Plinio Marcos o teatro nacional e a censura; com Moniz Bandeira, a força das multinacionais. Como num ritual, peças como O que mantém um homem vivo, de Brecht, remetiam à ditadura. Músicas, poemas, tudo tinha um segundo texto, uma segunda intenção. O mundo era como uma metáfora, todos engajados numa interpretação crítica.

Então, aquele pequeno grupo de jovens estudantes organizou no DCE um seminário que abordava a situação da mulher no trabalho, nas relações pessoais, na vida política. Entre outras, a feminista Branca Moreira Alves, irmã de Márcio Moreira Alves, responsável por um discurso crítico – que provocou a ira do regime militar e o fechamento do Congresso Nacional, em 1968 –, falou da história do voto feminino no Brasil e na Inglaterra, onde a luta durou quase 100 anos, envolvendo várias gerações de mulheres. Therezinha Zerbini falou sobre o Movimento Feminino pela Anistia, da necessidade e da urgência de trazer para casa os brasileiros exilados pelo regime militar (o que ocorreria em 1979). Rachel Moreno falou da prostituição, e de como ela era consequência da família monogâmica e sua exigência de fidelidade.

Após o seminário do DCE/UFMG, o grupo continuou se reunindo e se tornou referência em Minas. O grupo lia e discutia principalmente A origem da família e da propriedade privada, de Engels (a busca da explicação de como havia se dado a grande derrocada do matriarcado); Descondicionamento da mulher, e Educar para a submissão, de Elena Belloti, que mostravam como, até antes de nascer, as expectativas eram diversas para meninos e meninas e como a educação forjava a submissão das mulheres.

A grande questão de fundo era “como havíamos nos tornado mulheres” (já que Simone de Beauvoir alertara que “ser mulher” não era uma questão meramente biológica, mas um aprendizado social), e assim, com menos valor, menos direitos, menos liberdade e... pouco prazer sexual. Aos 20 anos, estávamos preocupadas com a questão do orgasmo – ou a falta dele.

Naquele dia, 18 de agosto de 1980, toda essa energia estava concentrada no adro da Igreja São José. Como numa cena teatral, cerca de 400 mulheres nas escadarias portavam velas acesas e rosas vermelhas. Adélia Prado veio de Divinópolis e falou. Maria Campos, da Liga Feminina Católica; Genival Tourinho, do PDT, único homem a falar no ato; uma feminista do Rio de Janeiro; Helena Grecco, do Movimento Feminino pela Anistia. Mirian Chrystus encerrou com a leitura do Manifesto das Mineiras (leia na página 3), que reivindicava a redemocratização do país – alertando que a democracia tinha que começar em casa e que as novas ideias só vingariam quando misturadas ao leite materno.

Foi uma bela noite. Dela nasceu a frase “Quem ama não mata”, pichada anonimamente em muros de Belo Horizonte e no Colégio Pio XII, que as freiras logo apagaram. Anos depois, a partir de 1985, foram criadas as delegacias de mulheres por todo o país.


DEPOIMENTO

É legal, mas... é triste
“É legal quando inventam aplicativos que indicam lugares de risco ou um que seleciona motoristas mulheres, quando existe uma lei (não tão eficiente) para amparar brigas domésticas, quando algumas moças postam dicas de como se proteger ao andar na rua ou quando existe um vagão feminino no trem. Mas, mais do que tudo, é triste! É triste não se sentir senhora do seu corpo porque ele pode ser violado a qualquer hora. É triste ter medo de andar na rua, de passar um batom, de usar uma roupa... E saber que,  mesmo sem nada disso, você ainda é alvo. É triste ter que ficar atenta até no transporte público. É triste ver as histórias horríveis ocorrendo com outras mulheres só por serem mulheres. É triste ver quando as histórias dessas mulheres são pejorativamente contadas. É triste ser diminuída a estereótipos que dispensam sobre nós em relação a estéticas, competição com as demais, cognição e comportamento. É triste não ter a liberdade de ir e vir”.


Maria Martuchelli,
estudante da UFMG, de 19 anos, no Facebook (2018)


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