A mais encenada das peças de qualidade produzidas nos primeiros anos após a Revolução Russa de 1917, Os dias dos Turbin ganhou agora uma bela e caprichada edição brasileira, da Carambaia, com tradução de Irineu Franco Perpétuo. Seu autor é Mikhail Bulgákov (1891-1940), que também escreveu O mestre e Margarida, obra-prima do romance russo.
Pode-se dizer que o sucesso da peça decorreu do emprego dos mesmos condimentos usados no livro monumental: o ritmo acelerado da narrativa, com muitas peripécias, a criação de personagens marcantes e o humor permanente e simplesmente devastador.
A peça foi baseada num romance do próprio Bulgákov, intitulado A Guarda Branca, que descreve os últimos dias da resistência do Exército Branco, na Ucrânia, diante do avanço do Exército Vermelho. Mas como uma peça com esse enfoque chegou a alcançar 987 récitas entre 1926 e 1914?
Simplesmente porque Os dias dos Turbin tinha um admirador fanático, chamado Stálin, que a teria assistido em 16 ocasiões. Aliás, em carta o ditador chegou a defender o texto de Bulgákov: “Se até mesmo gente como os Turbin é forçada a depor as armas e se submeter à vontade do povo, reconhecendo sua causa como definitivamente perdida, quer dizer que os bolcheviques são invencíveis”.
A peça se divide em quatro atos. No primeiro, engraçadíssimo, conhecemos os personagens: os três irmãos Turbin (o heroico oficial de artilharia Alexei, o jovem Nikolai e a bela Elena), o primo caipira chegado do interior (Larióssik), o cachaceiro destemido (Mychlaiévski), o galãzinho canalha (Chervínski) e o traidor covarde (Thalberg). Os três primeiros atos se passam no inverno de 1918 e o último no começo de 1919.
O segundo ato descreve, em tom de farsa, os acontecimentos políticos da época. A fuga dos dirigentes Brancos em direção à Alemanha tem seu auge em uma cena de pastelão, em que oficiais alemães fingem o sequestro do dirigente máximo do país. O terceiro ato narra a resistência heroica dos Brancos.
No quarto ato, já com Kiev nas mãos dos soviéticos, o cínico Chervínski diz a Elena: “Hoje ia de carruagem de aluguel, e tinha uns proletários zanzando de cá para lá, na calçada.
Bulgákov foi o mais famoso dramaturgo dos anos pós-revolução, e o mais censurado também. Várias de suas peças obtiveram sucessos estrondosos, antes do banimento, forçado por uma campanha sistemática de jornalistas e críticos que policiavam os que não se submetiam às exigências do cânone artístico comunista. “A lamacenta cloaca jornalística exclusivamente soviética”, como a definiu o escritor, jamais perdoou o homem que havia lutado em Kiev, sua cidade de origem, ao lado dos Brancos.
Por sua formação intelectual, sua fina ironia, sua vasta erudição, sua natureza avessa ao servilismo, em suma, por sua incapacidade de bajular, o autor de O mestre e Margarida foi massacrado pela mídia permitida na época.
Mikahil Bulgákov faleceu aos 48 anos em decorrência da mesma doença renal crônica que vitimara seu pai. Foi um dos poucos grandes autores de sua geração que não morreu a tiros diante de um pelotão de fuzilamento ou de fome num campo de concentração siberiano. Nunca foi preso nem torturado.
Há um episódio curioso entre Bulgákov e Stálin. Desesperado por não conseguir levar suas peças ao palco, o escritor enviou uma carta ao ditador, na qual pedia para viajar ao exterior, já que, ficando na Rússia, sem trabalho, morreria de fome. Caso lhe fosse negado o visto, solicitava um emprego do Estado. Acabou indicado diretor-assistente do Teatro de Arte de Moscou. Há quem diga que Stálin arranjou trabalho para Bulgákov porque estaria preocupado com o suicídio, dias antes, daquele que seria nomeado depois o Poeta Oficial da Revolução, Vladímir Maiákovski.
Apesar da indicação de Stálin, Bulgákov continuou enfrentado dificuldades para encenar seus espetáculos. Não tinha um passado de indigência que lhe permitisse se apresentar como filho do povo.
Há uma cena descrita no livro O diabo solto em Moscou (Edusp, 2002) que bem demonstra a incapacidade bulgakoviana de se adaptar às exigências estéticas do socialismo. Em uma reunião literária, um crítico generoso e bem-intencionado lia obras de jovens autores de cidades do interior da Rússia. De repente, Bulgákov pega um desses volumes. Pouco depois, pede para ler um trecho. Lê então a história de dois jovens operários – um rapaz e uma moça – que estão deitados, abraçados, escondidos em uma moita. Fazendo o quê? Cochichavam sobre... a “revolução mundial”. De repente, a moca começa a cantar. Cantiga de amor? Não.
Sabendo-se de casos como esse, realmente fica difícil compreender por que Bulgákov nunca foi convidado a passar uma temporada na Sibéria.
O DIABO E O AMOR
Ao lado de Vida e destino, de Vassili Grosmann, O mestre e Margarida (Editora 34, 2017) é um dos maiores romances produzidos na era soviética. Esses dois livros – que no Brasil tiveram excelente tradução de Irineu Franco Perpétuo – só foram publicados após a morte de seus autores. No Brasil, há outra edição de O mestre e Margarida, com tradução de Zoia Prestes (Alfaguara, 2010). O romance é considerado uma sátira devastadora da indigência material e do aviltamento moral em que viviam os artistas e intelectuais russos nos primeiros decênios após a Revolução Soviética. É também uma belíssima história de amor entre um homem que luta num ambiente adverso para levar adiante sua arte literária e de uma mulher que o ampara decididamente. Esses são o mestre e a Margarida do título. Mas o romance traz ainda como um dos principais personagens o professor Woland, a encarnação do diabo como se fosse uma versão russa do Fausto, de Goethe.
* Lourenço Cazarré é jornalista e escritor, autor de vários livros publicados, incluindo o infantojuvenil Os filhos do deserto combatem na solidão (Cepe, 2017). Seu mais recente romance, Kzar Alexander, o louco de Pelotas, recebeu recentemente o Prêmio Paraná de Literatura 2018.
OS DIAS DOS TURBIN: PEÇA EM QUATRO ATOS
De Mikhail Bulgákov
Tradução de Irineu Franco Perpétuo
Carambaia
160 páginas
R$ 64,90